- Resumo de Contratos:
1. A interpretação da doutrina do adimplemento
substancial
1.1. Em minha primeira participação na coluna Direito Civil
Atual, um espaço que poderá ampliar as oportunidades
de diálogo entre a doutrina e a jurisprudência, ofereço
aos leitores uma pequena contribuição sobre o instigante
tema do adimplemento substancial[1]. Foi com grande
satisfação que recebi o convite para integrar a Rede de
Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, uma iniciativa
muito necessária para o fortalecimento do Direito
Privado brasileiro em suas bases teóricas clássicas, mas
com os olhos postos no futuro. A satisfação também é
ampliada pelo convívio, na coordenação desta coluna,
com os colegas ministros do Superior Tribunal de Justiça,
Humberto Martins e Luis Felipe Salomão, dois nomes que
orgulham a judicatura nacional.
A doutrina do adimplemento substancial é uma construção do Direito inglês, que
remonta ao século XVIII, mas com crescente interesse no Brasil nas últimas três
décadas. A recepção do adimplemento substancial no Direito Civil brasileiro é, em
grande medida, resultado das lições do então professor da Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Clóvis Veríssimo do Couto e Silva. Em
suas aulas na pós-graduação, Clóvis do Couto e Silva apresentou a seus discentes
vários institutos do Direito Comparado, como a violação positiva do contrato, a
perturbação das prestações, a quebra da base do negócio e o adimplemento
substancial. Um de seus mais brilhantes alunos era Ruy Rosado de Aguiar Júnior.
É por essa razão que os primeiros acórdãos a tratar sistematicamente desses temas
no país foram de relatoria do desembargador Ruy Rosado, no Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul. Anos depois, quando nomeado para o Superior Tribunal de
Justiça, o ministro Ruy Rosado trouxe para o cenário jurisprudencial nacional esses
institutos e figuras jurídicas.
O primeiro acórdão do STJ sobre o tema data de 1995, relatado pelo ministro Ruy
Rosado de Aguiar Junior. É o Resp 76.362/MT, julgado em 11 de dezembro de 1995
pela 4a Turma, com publicação no DJ 1o de abril de 1996. O caso já é clássico e seu
resumo é este: a) dois segurados promoveram ação de cobrança para receber a
cobertura securitária devida em razão de acidente de veículo; b) os segurados
deixaram de pagar a última parcela na data do sinistro, o que foi confessado na
inicial; c) apreciada a ação pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso, entendeu a corte
que o segurado tinha “obrigação primordial” de pagar o “prêmio do seguro”. Sem
isso, nada poderia exigir da seguradora, na hipótese de se achar em estado de
inadimplência.
No STJ, com base nas lições de Clóvis do Couto e Silva, o relator ministro Ruy Rosado
de Aguiar Jr. deu provimento ao recurso utilizando-se da doutrina do adimplemento
substancial. Segundo ele “a companhia seguradora não pode dar por extinto o
contrato de seguro, por falta de pagamento da última prestação do prêmio, por três
razões: a) sempre recebeu as prestações com atraso, o que estava, aliás, previsto no
contrato, sendo inadmissível que apenas rejeite a prestação quando ocorra o
sinistro; b) a seguradora cumpriu substancialmente com sua obrigação, não sendo
sua falta suficiente para extinguir o contrato; c) a resolução do contrato deve ser
requerida em juízo, quando será possível avaliar a importância do inadimplemento,
suficiente para a extinção do negócio”.
A introdução da teoria do adimplemento substancial no STJ é um perfeito exemplo
da virtuosa associação entre doutrina e jurisprudência, um diálogo cada vez mais
raro em função do enorme acervo que os tribunais são levados a vencer todos os
dias e, infelizmente, pela postura mais reativa que parte dos doutrinadores acabou
por assumir em seus ofícios nas universidades e nos livros.
O surgimento do adimplemento substancial
A teoria do adimplemento substancial tem sua origem na doutrina e na
jurisprudência inglesas, que a partir de 1779 desenvolveu a doutrina da “substancial
performance”. Atualmente, os autores ingleses, tomando como fundamento a
gravidade objetiva do prejuízo causado ao credor pelo não cumprimento da
prestação, formulam três requisitos para admitir a substancial performance: a)
insignificância do inadimplemento; b) satisfação do interesse do credor; e c)
diligência por parte do devedor no desempenho de sua prestação, ainda que a
mesma se tenha operado imperfeitamente.[2]
No Direito inglês, há alguns precedentes antigos, sendo o relator Lord Mansfield o
responsável pelo desenvolvimento da noção de condição precedente para tratar das
obrigações que dependem do adimplemento da outra parte para poderem surgir.[3]
Um bom exemplo disso está no caso Boone v. Eyre (1777), que teve por objeto um
contrato celebrado por meio do qual o autor (Boone) traditaria uma fazenda e seus
escravos, ao passo em que o réu (Eyre) pagaria o preço de 500 libras, somado a
prestações anuais de 160 libras, com caráter perpétuo. Boone alienou a propriedade,
mas não tinha direitos de transferir os escravos. Eyre, em um típico caso de exceptio
non adimpleti contractus, sobrestou o pagamento das prestações anuais. Ao decidir
o caso, Lord Mansfield entendeu que a obrigação de dar a coisa (os escravos) não
seria uma condição precedente em face da obrigação de pagar as prestações anuais
perpétuas. O preço já havia sido pago. Restaria apenas a conversão em perdas e
danos.[4]
Trazendo para uma linguagem mais familiar ao Direito Civil brasileiro, pode-se
dizer que, em face do adimplemento substancial, o direito potestativo à resolução do
negócio não pode ser exercido em qualquer hipótese de inadimplemento. Essa é a
“tradução” da solução de common law para os padrões linguísticos de civil law.
Otavio Luiz Rodrigues Junior, em seu livro sobre a revisão judicial de contratos[5],
citando a obra de Edward Errante, refere-se a um exemplo hipotético de
adimplemento substancial, que também permite compreender essa doutrina em sua
concepção inglesa. As aspas correspondem ao texto do professor de Direito Civil da
Faculdade de Direito do Largo São Francisco e também coordenador da coluna
Direito Civil Atual:
a) Uma empreiteira foi contratada para construir uma mansão, “tendo o contratante
fornecido o projeto e as especificações da obra”. No prazo de sua entrega, a
empreiteira “apresentou a casa ao proprietário, ficando evidente a observância de
todas as indicações arquitetônicas e o uso dos materiais acordados, exceto por
faltarem maçanetas em duas portas”.
b) Nesse caso, “considerou-se ter havido o cumprimento substancial da obrigação”
pela empreiteira, “dada a insignificância das maçanetas no contexto da
empreitada”.
c) Assim, o contratante “não estaria liberado da prestação que lhe imputava o
contrato – que é o pagamento da obra. Ser-lhe-ia lícito, porém, deduzir o valor das
peças ausentes e o custo da instalação por terceiros”.
d) De tal modo, em situações tais, a parte não poderá resolver a avença invocando a
exceção do contrato não cumprido e será compelida a cumprir a sua respectiva
prestação.
Porém, reserva-se a esse contratante o direito à parcela faltante ou às perdas e
danos exclusivamente em relação à performance imperfeita do contrato.
É muito importante e necessário dizer que, no Direito inglês, no século XX, há
poucos julgados que utilizam a substantial performance. Esse caráter rarefeito indica
que, em sua origem, o instituto é usado com parcimônia e extremo cuidado. Os
magistrados ingleses salientam que a regra é o cumprimento estrito dos contratos e
que a ideia de que parcelas mínimas de uma obrigação não poderiam admitir o
exercício de um direito potestativo resolutivo pleno está centrada no juízo de
equidade, que desde os tempos de Henrique VIII serve para temperar os rigores do
direito estatutário.
Não se pode, desse modo, aplicar a noção criada pelos ingleses sem que se
desconsidere seu contexto histórico e sua visão restritiva. Outrossim, a vinculação
do adimplemento substancial inglês com a boa-fé objetiva, em sua concepção atual,
é um equívoco que muitos reproduzem, ignorando que se trata de uma doutrina do
século XVIII, quando nem mesmo na Alemanha se havia cogitado uma cláusula geral
como a da boa-fé objetiva, nos moldes de seu desenvolvimento na segunda metade
do século XIX.
Essa comparação se torna ainda mais curiosa quando se atravessa o Canal da
Mancha e se adentra ao Direito Continental, mais próximo a nossa realidade.
Veja-se, por exemplo, o caso da Itália.
O Direito italiano recepcionou a doutrina da substancial performance, com
disposições no Código Civil. O adimplemento substancial tem por efeito não permitir
o exercício do direito de resolução ao credor em face ao inadimplemento de pouca
importância. Na Itália, os requisitos são objetivos, previstos em lei e se espraiam por
tipologias negociais distintas.
A presença do adimplemento substancial na legislação, como se dá na Itália, diminui
os custos argumentativos para seu uso pelo juiz, ao mesmo tempo em que limita seu
emprego para além das bordas legais conhecidas de todos. Tem-se, portanto, maior
segurança jurídica e um desestímulo à judicialização. As partes conhecem os limites
de suas condutas e, por efeito, de suas pretensões.
Na próxima coluna, exploraremos a casuística do adimplemento substancial no
Superior Tribunal de Justiça.
* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito
Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).
Minha primeira contribuição para a coluna Direito Civil
Atual teve por objeto o instigante tema do adimplemento
substancial, quando examinei as origens dessa doutrina
no Direito inglês do século XVIII e sua evolução até os
últimos anos. Cuidei de explorar as diferenças de
fundamentos teóricos do adimplemento substancial
inglês e aquele que veio a ser formar no Brasil, graças a
um fecundo diálogo entre a doutrina, especialmente
aquela de origem alemã, recepcionada por intermédio
dos escritos de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, e a
jurisprudência, representada pela sempre original
atuação de um dos mais importantes ministros da
história do Superior Tribunal de Justiça, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, cuja trajetória
está muito bem delineada em entrevista por ele concedida a Jorge Cesa Ferreira da
Silva, publicada na Revista de Direito Civil Contemporâneo, volume 3, pp. 355-374, de
abril-junho de 2015.
Foi prometido aos leitores que a coluna teria uma segunda parte, que se ocuparia de
modo mais pragmático do exame da jurisprudência sobre a substantial performance,
tomando-se como objeto de análise o trabalho do Superior Tribunal de Justiça.
2. O adimplemento substancial em números
Em pesquisa na base de dados de jurisprudência do STJ, compreensiva de 1989 a
junho de 2015, é possível encontrar 29 acórdãos e 295 decisões monocráticas nas
quais o adimplemento substancial foi objeto de algum dos capítulos decisórios.
Interessam, ao menos para esta coluna, apenas os julgamentos colegiados, que
permitem compreender o pensamento definitivo da Corte sobre a matéria.
Desses 29 acórdãos, 12 não chegaram ao exame do mérito, vencidos que foram por
óbices clássicos como os fornecidos pelas Súmulas 5 e 7 do STJ ou ainda pelas
Súmulas 282 e 356 do STF.[1] Em outros 2 acórdãos, o STJ chegou a apreciar as
1.2. A interpretação da doutrina do adimplemento
substancial (Parte 2)
conclusões do tribunal de origem, firmando alguma posição sobre a hipótese
julgada, mas não a alterando sob o influxo das Súmulas STJ 5 e 7.[2] É bem
interessante notar que os últimos 9 acórdãos, correspondentes ao período de 2013-
2015, foram todos dessa natureza. Preservou-se o contexto fático da demanda vinda
dos tribunais locais e não se sentiu o STJ autorizado a revisar cláusulas contratuais e
matérias de fato ou superar deficiência no prequestionamento. Sobre esses últimos
julgados pode-se construir uma hipótese de que o STJ tem sido mais rigoroso no
filtro das questões sobre o adimplemento substancial. Trata-se apenas de uma
hipótese, pois admiti-la como tese implicaria a necessidade de um tempo maior de
observação da série histórica de julgados sobre o tema. Mas, é uma hipótese não
desprezível.
Dentre os casos decididos pelos órgãos colegiados do STJ encontram-se as seguintes
modalidades negociais: a) contrato de fornecimento (contrato administrativo) - Resp.
914087-RJ; b) contrato de seguro de automóvel (Resp. 76.362-MT); c) contrato de
promessa de compra e venda (Resp. 113.710-SP, Resp. 1.215.289-SP, AgRg no AgResp
13.256-RJ); d) contrato securitário no âmbito da previdência privada com aquisição
de cobertura de pecúlio por morte (Resp 877.965-SP); e) contrato de doação com
reserva de usufruto (Resp. 656.103-DF); f) alienação fiduciária em garantia (Resp.
1.287.402-PR, Resp. 469.577-SC, Ag Rg no AgResp 204.701-SC, Resp. 272.739-MG); g)
contrato de arrendamento mercantil (Resp. 1.200.105-AM, Resp. 1.051.270-RS); h)
contrato de compra e venda (Resp. 712.173-RS).
Esses dados são interessantes porque afastam a ideia de que o adimplemento
substancial é uma doutrina preponderantemente utilizada em contratos de seguro.
É perceptível que houve um alastramento de seu uso para outras espécies
contratuais, o que deve ser objeto de especial atenção pelos agentes econômicos e
pelos operadores do Direito.
Outro ponto que merece cuidado é a percepção do que seja o decaimento mínimo
para o STJ. Como expusemos na primeira coluna, um dos tópicos mais importantes
no estudo do adimplemento substancial é definir o que seria a parcela insignificante
de pagamento não adimplida pelo devedor e que permitiria a invocação da teoria
para afastar os efeitos da mora.
Seguem alguns dos critérios utilizados:
a) Atraso na última parcela: Resp. 76.362-MT.
b) Inadimplemento de 2 parcelas: Resp. 912.697-GO.
c) Inadimplemento de valores correspondentes a 20% do valor total do bem: Resp.
469.577-SC.
d) Inadimplemento de 10% do valor total do bem: Ag Rg no AgResp 155.885-MS.
e) Inadimplemento de 5 parcelas de um total de 36, correspondendo a 14% do total
devido: Resp. 1.051.270-RS.
3. Elementos para uma doutrina do adimplemento substancial a partir da casuística
do STJ
a) Requisitos para o adimplemento substancial. O primeiro acórdão do STJ sobre o
adimplemento substancial, de relatoria do ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr., é até
hoje a referência sobre os requisitos para a aplicação dessa doutrina no Direito
Privado. Para o relator, o adimplemento substancial demanda: a) a existência de
expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes. Um exemplo disso
está no recebimento reiterado de parcelas em atraso no contrato de seguro e a
posterior mudança de atitude quando do último pagamento, o que quebraria essas
expectativas legítimas e levaria a um comportamento contraditório; b) o pagamento
faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio. Essa correlação é
que permite formular um juízo sobre o caráter substancial do adimplemento
realizado; c) é possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito
do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários.[3]
b) Adimplemento substancial e direito potestativo à resolução do contrato. O
reconhecimento de que, no Direito brasileiro, o adimplemento substancial serviria
como uma espécie de causa paralisante do direito potestativo à resolução do negócio
jurídico por inadimplemento radica-se em outro julgado de relatoria do ministro
Ruy Rosado de Aguiar Júnior, quando este afirmou: “Usar do inadimplemento
parcial e de importância reduzida na economia do contrato para resolver o negócio
significa ofensa ao princípio do adimplemento substancial, admitido no Direito e
consagrado pela Convenção de Viena de 1980, que regula o comércio internacional”.
[4]
Em julgado mais recente, o ministro Sidnei Beneti afirmou que não há
incompatibilidade entre o adimplemento substancial e a exceptio non adimpleti
contractus, dado que “tais institutos coexistem perfeitamente podendo ser
identificados e incidirem conjuntamente sem ofensa à segurança jurídica oriunda
da autonomia privada”.[5]
c) O que é “parcela ínfima”? O conceito de parcela ínfima, o elemento objetivo para
caracterizar o adimplemento substancial, é menos uniforme na jurisprudência do
STJ, como visto na seção anterior desta coluna. Nesse ponto, os parâmetros
terminam por ser menos rígidos. O percentual de menos de 20%[6] do valor do bem
ou 14%[7] do total devido foi utilizado para essa finalidade, bem como a
circunstância de não haver sido paga a última parcela da dívida, associada a óbices
criados pelo próprio credor.[8]
Trata-se, de fato, de um ponto que está a merecer maior sedimentação no STJ.
d) Em que se fundamenta o adimplemento substancial? O fundamento mediato do
adimplemento substancial, em acórdãos de relatoria da ministra Nancy Andrighi,
seria a função limitadora do exercício dos direitos pela boa-fé objetiva, que se
colocaria ao lado da doutrina dos atos contraditórios.[9] É também encontrável
acórdão, da lavra do ministro Luís Felipe Salomão, que empresta ao adimplemento
substancial o fundamento imediato da boa-fé objetiva e da função social do contrato,
associados ao princípio da conservação dos negócios jurídicos.[10]
e) Adimplemento substancial e Direito Processual Penal. Um debate que surge na
atualidade é o relativo à extensão do adimplemento substancial para o Direito
Processual Penal, no que se refere à extinção de punibilidade e à suspensão
condicional do processo. Começam a surgir críticas a essa extensão da doutrina para
além dos campos do Direito Privado:
Na corte, não há precedentes de colegiado sobre o uso da doutrina do adimplemento
substancial em matéria de sursis ou de extinção de punibilidade. Encontrei, porém,
decisões monocráticas do ministro Sebastião Reis Júnior e da ministra Maria
Thereza de Assis Moura nas quais se rejeitou a tese de sua aplicação ao caso.[12]
Não houve um exame específico do cabimento da doutrina no Direito Penal, mas
quer me parecer que a transposição desse conceito para além das fronteiras de uma
relação jurídico-obrigacional não se revela muito apropriada.
4. Conclusão
Encerro com esta coluna minha pequena contribuição ao estudo da doutrina do
adimplemento substancial, sempre tendo como norte o necessário diálogo entre o
“Direito dos professores” e o “Direito dos juízes”. Tenho a esperança de que as ideias
lançadas aqui e na coluna anterior possam estimular o debate e a reflexão sobre um
tema de tal importância para a segurança jurídica e para o equilíbrio das relações
negociais no Brasil.
“Não há uma relação de natureza obrigacional entre o condenado
e o Estado. O réu cumpre uma pena e o fundamento de sua
sanção, que assume variegadas explicações ao longo da História
do Direito Criminal, não é o de uma contraprestação a um crédito
ou débito contraído pelo apenado. (...) O apenado não é um
‘devedor’, muito menos a suspensão condicional assume caráter
de um negócio jurídico. Se esta distinção é correta, não há como
se reconhecer um ‘direito potestativo’ à “resolução” do sursis (as
aspas são propositais). Por mais belos que possam ser os
requisitos do adimplemento substancial no Direito Civil, é
totalmente impossível adaptá-los aos esquemas teóricos
igualmente respeitáveis do Direito Penal”[11].
“
Não é possível esquecer que a doutrina da substantial performance nasceu no século
XVIII, bem antes da formulação moderna da boa-fé de matriz alemã, em uma
tradição jurídica diferente da nossa e que, mesmo hoje em dia, é aplicada com
parcimônia pelos tribunais ingleses. No Brasil, o adimplemento substancial corre o
risco de padecer sob os efeitos da má recepção de institutos jurídicos. É importante
que essa doutrina seja estudada em profundidade e que as balizas para sua
incidência se tornem cada vez mais objetivas e previsíveis.
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito
Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e
UFMT).
2. GLOBALIZAÇÃO, SOCIEDADE, ESTADO DEMOCRÀTICO DE DIREITO E SOBERANIA
COMPARTILHADA
A globalização é a interconexão dos níveis da vida cotidiana em diversos lugares no mundo, por
meio de técnicas, que vão da enxada à cibernética.³ Pode o instituto ser dividido em cinco fases: a) a
primeira com a expansão da cultura grega pelo mundo;4 b) a segunda do Império Romano; c) a terceira
referente às expedições e as conquistas européias dos séculos XIV a XVI; d) a quarta atinente à revolução
industrial do século XIX até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918); e) a quinta do fi nal da Primeira
Guerra Mundial até os presentes dias.5 Esse fenômeno é estudado por intermédio da participação política,
da política econômica ou do fenômeno jurídico, a fi m de aprimorar a apreensão dos pressupostos da vida
social na atualidade.
O signifi cado do termo globalização é plurívoco e possui diversas dimensões, a saber: a econômica;
a política; a social; a ambiental; a cultural, além da existência de outras espécies,6 embora os signifi cados
econômico e transnacional permitam analisar a globalização com maior nitidez, cujo intuito é demonstrar
as mazelas político-jurídicas trazidas no bojo do fenômeno, a partir de uma perspectiva mundial.7
Ressalte-se que essa variedade de prismas põe em xeque a existência do instituto, pois, ele “apaga as linhas
divisórias entre os diferentes reinos da sociedade – político, econômico, social e cultural”, de acordo
com Kumar.8 Certo é que a globalização também possui aspectos positivos como a troca mais rápida de
conhecimentos e de informação entre os povos.
Não obstante isso, os múltiplos enfoques de abordagem combinam complexamente as referidas
dimensões e conectam-se com outros elementos sociais como a desigualdade, a explosão demográfi ca,
os problemas ambientais, a fortifi cação da indústria bélica e a democracia formal, como condição de assistência
internacional a países periféricos e semi-periféricos.9 Diante disso, a análise da globalização
deve ser diacrônica, uma vez que a realidade é totalizante (compreensão aberta e dinâmica do que é compreendido
– modelo marxista) e a perquirição da participação política e da jurídica abarcam a transdisciplinariedade
das ciências sociais10.
Lembra Ricardo Marcelo Fonseca que o Direito não pode ser explicado pelo Direito, isolando-o
do processo histórico em que se insere, visto que determina e é determinado pelo social, pelo político, pelo
econômico, etc.,11 sendo importante analisar o passado político-jurídico do Estado Moderno para se che-
_____________________________
³LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito: análise das mazelas causadas no plano
político – jurídico. Porto Alegre: Fabris Editor, 2002, p. 122-124.
4GONÇALVES, Vânia Mara Nascimento. Estado, sociedade civil e princípio da subsidiariedade na era da globalização.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 9.
5Em sentido parecido, mas trabalhando quatro fases da globalização: LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: parte
geral. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 61.
6VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 80-100.
7LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito: análise das mazelas causadas no plano
político – jurídico., p. 11-13.
8KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio
de Janeiro: Zahar, 1998, p. 113.
9SANTOS, Boaventura Sousa. Globalización del derecho: los nuevos caminhos de la regulación y la emancipación.
Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 1998, p. 39.
10LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito: análise das mazelas causadas no plano
político – jurídico., p. 20-22.
11FONSECA, Ricardo Marcelo. Notas sobre a construção de um discurso historiográfi co jurídico. Revista Sequen-
“Nasci em Praga, sou sobrinha-neta de Kafka. Você acha
que decidi estudar o sistema fi nanceiro internacional por
qual razão? Não existe nada mais kafkaniano”.
(Stephany Griffi th-Jones)
104
se chegar às soluções para o presente. A base dessa refl exão histórica é a Teoria da História de Walter
Benjamin,12 “o qual preconiza que o resgate do passado acontece quando o presente vive uma situação
de perigo, que o passado neste momento preciso se revela ao presente” – a “redenção” do passado é a
condição necessária para a “salvação” do presente, visto que o passado é volátil e trará respostas para as
questões atinentes à globalização, que representa os riscos potenciais e/ou concretos do presente.
Nesse passo, percebe-se que a soberania e o Estado Moderno partem de uma noção de política
moderna que se referencia num espaço limitado politicamente e territorialmente (Estado-nação) e nas
teorias nacionalistas, o que aumentou a participação popular na formação e na defesa dos direitos civis,
políticos, econômicos e sociais dos cidadãos, de acordo com a concepção de Marshall.13
A globalização está ligada à teoria econômica neoliberal, que prega intervenção estatal mínima, a
redução dos mencionados direitos dos cidadãos,14 com pessoas jurídicas transnacionais rivalizando poder
com os Estados, por meio da implementação de uma nova divisão internacional de trabalho que dispersa
a produção em vários países. As políticas neoliberais procuram diminuir as responsabilidades estatais em
prol do mercado, mantendo o Estado como garantidor do livre mercado e em detrimento das necessárias
tutelas estatais atinentes às querelas sociais. Esses fatores afetaram o conceito de Estado, as suas fronteiras
e a sua importância, a definição de soberania e valorizaram o mercado, gerando crise no modelo anteriormente
construído de Estado-nação.
A transnacionalização do espaço político e a ausência de fronteiras territoriais demonstram que a
participação política do cidadão diminuiu, perdendo-se um local de conquista, de exercício e de defesa
de direitos, gerando consequências políticas e jurídicas. As primeiras foram a perda de poder político do
Estado e a participação política dos cidadãos, que se distanciam das decisões e se tornam consumidores
individualistas e egoístas daquilo que é imposto pela esfera política, a fragmentar a sociedade. O debate
político se unifica, pois cinge-se ao critério econômico (dogma neoliberal), o que majora as desigualdades
sociais e enfraquece as garantias trabalhistas. Isso impede que os cidadãos exerçam com clarividência
os seus direitos civis, econômicos, políticos e sociais, a expressar as mazelas jurídicas advindas da globalização
econômica (exploração sem limites). A globalização afeta a democracia, haja vista que sempre
os direitos dos cidadãos são relativizados em nome de uma suposta “integração dos países no processo
de mundialização da economia”, cujas decisões políticas são tomadas por um poder deslegitimado e que
representa os interesses mercadológicos em todo o mundo, com muitos governos governando para o mercado.
16
Com a globalização econômica o Estado não controla o fl uxo de capitais, o poder eleito perde a
identidade e se curva ao poder sem representatividade do mercado, ou seja, primeiro poder é o econômico,
o segundo, o midiático e o terceiro, o político. As pessoas não conseguem reivindicar os seus direitos a
contendo, bem como elas não se reconhecem nesse novo poder das gigantes transnacionais, com o locus do
poder voltado para o mercado e para o pensamento econômico único,17 como salienta José Eduardo Faria:
_____________________________
CIA, n. 30, Edusc, 1995, p. 100-107.
12BENJAMIN, Walter. Teses sobre a fi losofi a da história. In: KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin
(col. Grandes cientistas sociais, v. 50). 2.ed. São Paulo: Ática, p. 153-164.
13LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito: análise das mazelas causadas
no plano político – jurídico., p. 22.
14LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: parte geral., p. 60-61.
15David Held conceitua soberania como “a autoridade política, no seio de uma comunidade, que detém o
direito incontestado de defi nir o sistema de normas, regulamentos e políticas de um dado território, e de
governar de acordo com esse direito”. HELD, David. A democracia, o Estado-nação e o sistema global.
Revista Lua Nova, n. 23, março de 1991, p. 165-166.
16LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito: análise das mazelas causadas
no plano político – jurídico., p. 25-27.
17LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito: análise das mazelas causadas
no plano político – jurídico., p. 207-210. RAMONET, Ignacio. Geopolitica do caos. 2.ed. Petrópolis:
Pablo Malheiros da Cunha Frota
Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais, Curitiba, 12: 102-117 vol. 1
ISSN 1678 - 2933
105
Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais
O voto dos indivíduos, no mundo globalizado, não mais infl uencia na condução da economia,
retomam-se racismos e movimentos chauvinistas na Europa, restringe-se a democracia representativa e o
pluralismo democrático, a desestruturar os vários segmentos em prol dos interesses do livre mercado global,
dissociando a economia da realidade social, em que a estabilidade exigida pela globalização se extrai
da homogeneidade, porque a diferença é a anomalia. Quem se opõe à globalização é considerado pária do
mundo global, visto que “para viver-se no mundo globalizado, temos que nos despojar de nossas peculiaridades”,
19 sendo o instituto uma armadilha para a democracia – do voto cidadão ao voto monetário.
A globalização econômica com esse cariz não promove estabilidade e democracia, já que entre a
liberdade e a democracia, os neoliberais fi cam com a primeira.20 O neoliberalismo desponta um controle
pela minoria da maior parte possível da vida social, com o fi to de tutelar os benefícios individuais. Deve-se
lutar contra isso, com base na lição de Chomsky, citada por McChesney: “Como diz Chomsky, se agirmos
com a idéia de que não haverá possibilidade de mudança para melhor, estaremos garantindo que não
haverá mudança para melhor. A escolha é nossa, a escolha é sua”22.
Além disso, a globalização e o capitalismo incluem aqueles que conseguem viver neste ambiente e
excluem os que não têm esta sorte, porque o interesse da sociedade foi substituído pelo interesse do mercado
mundial. O sujeito perde suas crenças e suas ideologias, situação refl etida na comunidade com o esfacelamento
dos valores fulcrais do corpo social. Estes valores foram substituídos por uma ética econômica,
que traz em seu bojo novas situações sociais subjetivas e objetivas, constituintes de retrocessos ante as
conquistas democráticas.22 A ideologia global e capitalista prega o fi m da história, à medida que não seria
possível a fi losofi a e as ciências sociais descobrirem outro modo de produção que resolvesse os problemas
sociais. Pregam o fi m da história também cientistas contemporâneos com o triunfo do capitalismo como
modo de produção e da democracia como sistema de governo e de acesso aos bens de consumo, dado que
o importante é a felicidade material.23
Corrobora-se com o assentado acima, a crise econômica instalada no mercado mundial a partir do
segundo semestre de 2008, que colocou em xeque ou, no mínimo, remodelou as práticas supercapitalistas
defendidas pelos neoliberais, como aponta o Presidente da França Nicolai Sarkozy: “É necessária uma refundação
global do capitalismo, baseada em valores que ponham as fi nanças a serviço dos negócios e dos
cidadãos, e não vice-versa”.24 Nessa linha, afi rma Stephany Griffi th-Jones que “Antes da crise, os gover-
_____________________________
Vozes, 1998, p. 72-73.
18FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 107.
19LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito: análise das mazelas causadas no plano
político – jurídico., p. 211-215.
20LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito: análise das mazelas causadas no plano
político – jurídico., p. 174-176.
21CHOMSKY, Noan. Ou o lucro ou as pessoas. 5.ed. trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002,
p. 15-17.
22COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2007, p. 30/60 e ss.
23COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro., p. 49-65.
24SARKOZY, Nicolai. Por um novo capitalismo. O GLÔBO, ano LXXXIV, n. 27.464, de 16 de outubro de 2008,
p. 21.
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“Essa concorrência selvagem e essas competições acirradas, é evidente, tendem a ser tanto
mais cruéis ou perversas quanto mais as economias desses países encontram-se debilitadas
por défi cits fi scais crônicos, minadas por taxas insufi cientes de poupança interna enfraquecidas,
pela desvalorização de suas respectivas moedas e vitimadas pela perda das vantagens
comparativas, em termos de controle de matérias-primas que até recentemente eram
estratégicas. E revelam não apenas o grau de deslocamento do poder decisório do Estadonação
para o mercado, mas, igualmente, o sentido e o alcance de sua desterritorialização e
fragmentação”18.
106
nos foram muito mal, não houve prevenção. Gente como Greenspan foi completamente irresponsável.
Eles acreditaram na efi ciência do sistema. (...) é absurdo os governos terem sido forçados a resgatar os
bancos, criando pacotes keynesianos para compensar a queda do crédito privado porque não tiveram alternativa,
e agora os mercados queiram vir castigar esses mesmos governos. É no mínimo um paradoxo”. 25
Busca-se, contudo, o desenvolvimento sustentável, focalizado na pessoa humana, nos direitos
humanos, nas liberdades fundamentais funcionalizadas e constitucionalizadas, particularmente no que
toca às titularidades e ao trânsito jurídico, visto que os institutos jurídicos servem para efetivar a cidadania
plena e material dos membros da sociedade. Nesse passo, a globalização interfere na sociedade, no
Estado, no direito e nos contratos, mormente quando fomenta a tecnocracia com as normas efi cazes preponderando
sobre as justas, vilipendiando as Constituições em homenagem a lex mercatoria.
A globalização econômica faz com que o indivíduo não seja realmente cidadão, integrando-o na sociedade
hiperconsumista de maneira frágil, ansiosa e solitária,26 em que a busca da felicidade pelos membros desta
se transforma na ordem do dia. Foca-se o aspecto material, não abarca a completude da existencialidade
dos seres humanos e majoram-se as suas frustrações, carências e decepções.27 Procura-se também reduzir
direitos e garantias fundamentais constitucionais e atacar legislações protetivas de determinados grupos
sociais, por “obstacularizarem” o “crescimento econômico, social e político” da sociedade.28
Destrói-se a cultura dos povos em nome de um sistema padronizado e único. É o chamado discurso
da global governance, que mitifi ca o mundo real, fomenta o neoliberalismo e multiplica o acesso aos bens
e aos objetos materiais, mantidos concretamente para parcela diminuta da população.29 A solução para resistir
à tirania da global governance é o Estado e a sociedade praticarem a boa governança, que, no âmbito
do Estado Democrático de Direito, tem como pressupostos e medidas de implementação, segundo Mário
Lúcio Quintão Soares, a(s):
Dessa maneira, segundo Miguel Reale, o Estado Democrático de Direito traduz a opção pela
democracia social, “isto é, para uma democracia na qual o Estado é compreendido e organizado em essencial
correlação com a sociedade civil, mas sem prejuízo do primordial papel criador atribuído aos
indivíduos”.31
_____________________________
25GRIFFITH-JONES, Stephany. O mercado e a barata. Carta Capital. 24 de fevereiro de 2010 – Ano XV
– n. 584, p. 48-50, p. 48-49.
26BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001, p. 46–47.
27LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. trad. Maria
Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 153/157–158/168–171.
28COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro., p. 76.
29SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do estado: novos paradigmas em face da globalização. 3.ed. São
Paulo: Atlas, 2009, p. 360
30SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do estado: novos paradigmas em face da globalização., p. 369–
370.
31REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o confl ito das ideologias. 3.ed. São Paulo: Saraiva,
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“a) identidade coletiva; b) deliberações que legitimem as ações políticas estatais; c) sistema
político efi ciente e responsável; d) primado da ética na gestão de recursos públicos; e) reconhecimento,
por parte de uma comunidade política, de uma responsabilidade compartilhada;
f) outorga de necessárias competências aos órgãos estatais incumbidos de prevenir e combater
a corrupção. (...)
a) revitalização da sociedade civil na qual se fundamenta sua estrutura; b) democratização
das forças políticas, através de mecanismos eleitorais incisivos e transparentes; c) racionalização
dos meios de produção, por intermédio da criação de instrumentos constitucionais
que possibilitem a permanente distribuição de rendas”.30
O Estado Democrático de Direito detém quatro dimensões – juridicidade, sustentabilidade ambiental,
socialidade e democracia32 – que impõem a todos o respeito e o cumprimento real delas, sob pena de
as constituições democráticas do período atual se tornarem meros pedaços de papel. Esse Estado se constrói
diuturnamente do povo para o parlamento com o fi to de atender as querelas sociais e para promover
a justiça socioambiental, visto que a democracia nesse tipo de Estado é representativa e participativa ou
procedimentalista. Esta não impõe conteúdo normativo, mas externaliza a forma pela qual devem se comportar
Estado e sociedade. O cidadão reconhece os problemas e procura solucioná-los efetivamente por
intermédio das condições postas pelo Estado, tendo em vista o princípio da subsidiariedade, efeito também
derivado da globalização. Os destinatários das normas jurídicas são os seus próprios autores.33
Esse tipo de Estado normatiza os direitos fundamentais, aplicáveis diretamente em qualquer relação
jurídica e valoriza os princípios, essência, substância e tecido das Cartas Magnas, com destaque para
o da dignidade da pessoa humana, porque a soberania constitucional é a soberania dos princípios, como
apontado por Bonavides.34 Esse Estado, portanto, deve enfrentar as consequências perversas que atingem
a sociedade contemporânea global, denunciadas por Luiz Edson Fachin:
Os aludidos fatores colaboram para a relativização dos poderes do Estado-Nação, das suas fronteiras
nacionais, mormente pela implantação de políticas neoliberais, a infl uenciar a participação política
dos povos. O Estado partilha a soberania que possui com instituições nacionais, internacionais, multinacionais,
transnacionais, caracterizando-se como Estado-rede e a soberania como compartilhada,36 sendo
muitas vezes o Estado sendo comandado pelos interesses das grandes sociedades empresárias. Isso afeta
o aspecto social de um povo, visto que os centros decisórios são extranacionais e supranacionais, com
decisões nacionais fi cando a reboque das deliberações internacionais, a violar o princípio da cidadania de
cada indivíduo.37
Percebe-se que o fenômeno da globalização obsta a concretização dos objetivos traçados pelo
Estado Democrático de Direito, que se destina “a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais,
a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífi ca das controvérsias”, conforme preâmbulo da Constituição
Federal brasileira de 1988.
As questões postas pela sociedade atual levam ao seguinte paradoxo: os aludidos fatores alargam
as desigualdades sociais nos países, principalmente do Ocidente, ao mesmo tempo em que a maioria das
_____________________________
2005, p. 43.
32BARROSO, Lucas Abreu. A obrigação de indenizar e a determinação da responsabilidade civil por dano ambiental.
Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 41–56.
33Veja SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do estado: novos paradigmas em face da globalização., p. 213–216.
34BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 51–59.
35FACHIN, Luiz Edson. O seqüestro da sociedade. Jornal Gazeta do Povo. Opinião do dia. Curitiba, p. 2, ano 90,
edição 28.780, 22 de agosto de 2008.
36DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, Estado e futuro do capitalismo. São
Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 102-103.
37LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito: análise das mazelas causadas
no plano político – jurídico., p. 186-189.
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“Nos campos e cidades, no povo, nos burgos e nos arraiais, encontrou-se o tempo do vazio e
o espaço do consumo. (...) Basta uma lei, pura e simples, para quem quer que seja. Em suma,
a pessoa deixou de ser a medida de todas as coisas e os objetos passaram a ser a medida das
pessoas (...). Quem sabe se deva começar pela compreensão de que a fome não é a falta de
bens e sim a ausência de direitos”.35
Constituições das respectivas nações traz como espécie estatal o Estado Democrático de Direito, sendo
certo que um dos objetivos deste é reduzir as mencionadas desigualdades.
Torna-se necessária, destarte, a construção de uma teoria crítica e impura do Direito38, que estatua
este com a ontologia do social, na qual o intérprete participe da mudança do fenômeno jurídico por
intermédio de uma interpretação prospectiva dos institutos jurídicos ao adequá-los ao momento histórico
e à realidade contemporânea,39 realizando o Direito de maneira justa e legítima, mesmo se afrontar a legislação
estatal posta, muitas vezes desconectada da realidade concreta da sociedade. Ianni assevera que
devemos pensar, “compreender e explicar essa sociedade, tanto em suas singularidades e particularidades
como nos horizontes da história universal”.40
2. O QUE SIGNIFICA DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL?
Sabe-se que o Direito é uma das ciências que serve ao desenvolvimento da sociedade e para minimizar
os problemas decorrentes da evolução social. Percebe-se, assim, o Direito como Ciência prática e
volvida para encaminhar, juntamente com as demais ciências, as soluções necessárias para a resolução dos
problemas jurídicos, econômicos, culturais e sociais que afl igem a sociedade. Como destaca Luiz Edson
Fachin, o Direito não pode ser somente isso que está aí, mas sim uma síntese de múltiplas determinações
e de conquistas sociais, sempre almejando saber “para que serve e a quem serve o Direito”.41
O Direito contemporâneo não pode ser o resultado daquilo que a classe dominante prega como
melhor, correto e justo. Deve aquele promover efetivamente a dignidade da pessoa humana, a cidadania
material, a igualdade substancial, os valores sociais, econômicos, ambientais, a democracia, a fi m de que
a sociedade seja justa, solidária, tolerante com as diferenças e que seus cidadãos sejam realmente emancipados
intelectualmente e não objetos de manobras alienantes por quem detém o poder, principalmente em
uma relação contratual, meio de realização da ordem econômica 42 e de síntese de direitos fundamentais.
Nessa linha, os institutos civis devem ser interpretados de acordo com os reclamos da sociedade
contemporânea, que, para alguns seria por meio da metodologia civil constitucional, também chamada
de direito civil constitucional. A gênese do “direito civil constitucional” fundamenta a ideia da incidência
da Constituição no Direito Civil, tema recorrente, segundo Perlingieri, em países com novas constituições
após a 2ª Guerra Mundial. O conceito de direito civil constitucional comporta uma análise inicial
do exame da Constituição como norma jurídica além de política, abandonando o seu tradicional caráter
programático, atribuindo-a efi cácia direta e imediata e supremacia no ordenamento jurídico, com a norma
constitucional assumindo uma função promotora de transformação das instituições tradicionais do direito
civil. Examina-se se a pessoa em si considerada – sujeita de um patrimônio e membro de uma família –
aparece dotada na Constituição, sendo a norma constitucional a infra-estrutura do direito civil.43
Luiz Edson Fachin alude que não realizar a leitura hermenêutica dos institutos privados “à luz da
Constituição de 1988 é fazer trabalho lacunoso, sem o rigor jurídico-científi co assaz necessário aos juristas”,
44 a salientar a afi rmação de Paolo Grossi de que o jurista autêntico é aquele “immerso nel suo tempo
_____________________________
38Veja sobre a Teoria Impura do Direito em LOPEZ MEDINA, Diego Eduardo. Teoría impura del derecho: La transformación
de la cultura jurídica latinoamericana. Bogotá, 2004, Ediciones Universidad de Los Andes, Universidad
Nacional de Colombia.
39COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 7–8.
40IANNI, Octavio. Teorias da globalização. 15.ed. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2008, p. 113-115.
41FACHIN, Luiz Edson. FACHIN, Luiz Edson. A “Reconstitucionalização” do direito civil brasileiro. In: FACHIN,
Luiz Edson. Questões do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 11–20.
42LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: parte geral., p. 57.
43Veja FLÓREZ-VALDÉS, Joaquín Arce y. El derecho civil constitucional. Madrid, 1986, p. 13, 17-20.
44FACHIN, Luiz Edson. O direito civil contemporâneo, a norma constitucional e a defesa do pacto emancipador. In:
CONRADO, Marcelo; FIDALGO PINHEIRO, Rosalice (Coords.). Direito privado e constituição: ensaios para uma
recomposição valorativa da pessoa e do patrimônio. Juruá: Curitiba, 2009, p. 17-32, p. 22-23.
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senza restarne prigioneiro”. 45 Saliente-se que, não obstante o movimento de constitucionalização do direito
civil tenha se iniciado no direito italiano, com Pietro Perlingieri como seu maior formulador, a produção
científi ca no Brasil é autêntica, ampla e rica.46
Virgílio Afonso da Silva nega a criação de um direito civil constitucional, porque as normas de
direito civil não deixam de ser de direito civil por estarem no texto constitucional, bem como se equivoca
quem pensa que parte do direito civil esteja completamente imune às infl uências da normativa constitucional,
pois todo o direito civil recebe a mencionada infl uência, a perder o sentido da referida expressão
direito civil constitucional, “a não ser que a expressão direito civil, sem qualifi cativos, seja abandonada,
por deixar de fazer sentido”.47 Frise se que não existe, por exemplo, Direito civil constitucional diferente
do Direito civil, mas a expressão civil constitucional, administrativo constitucional etc. serve para destacar
e para qualifi car a leitura feita do ‘ramo’ jurídico a partir da Constituição. É método e signifi cado na construção
do novo Direito Civil,48 transformado pela axiologia constitucional.49 Além do mais, não há disputa
de espaço entre a normativa supra-nacional e a legislação de cada país, da normativa constitucional
com a legislação infraconstitucional, mas o compartilhamento de regramentos, de princípios, de valores e
de experiências culturais. Certas vezes, importa realçar uma expressão para que não se corra o risco de se
analisar determinado instituto de forma equivocada, mormente diante da aversão da maioria dos juristas e
operadores do direito à quebra e à modifi cação de paradigmas existentes.
Isso rompe a arquitetura jurídica tradicional, diante da perspectiva renovada de uma leitura do
Direito estribada na normativa constitucional, a qual, entendimento de Luiz Edson Fachin, não se limita
ao texto expresso, já que se almeja um direito além da circunscrição codifi cada, da legislação especial e
da extravagante, apreendidos e iluminados pelos princípios constitucionais.50 Afasta-se a interpretação
jurídica da simples revelação do texto de lei, que possui signifi cado potencial e deve ser complementado
pela atividade do intérprete na produção da norma.51 Ressalta Gadamer que “a compreensão nunca é um
comportamento meramente reprodutivo, mas também é sempre produtivo” –52 a fi m de compreender e de
realizar o Direito de acordo com a época e com o contexto cultural da sociedade, visto que a interpretação
não é atemporal.
Antônio Manuel Hespanha precisa o momento de mudança com a seguinte assertiva: “(...) por
detrás da continuidade aparente na superfície das palavras está escondida uma descontinuidade radical na
profundidade de sentido”,53 a talhar uma novel perspectiva de exame dos pilares do Direito, v.g., o contrato
– interpretado sob o infl uxo das alterações procedidas pela sociedade contemporânea. O repto do jurista na
_____________________________
45GROSSI, Paolo. Nobilità del diritto: profi li di giuristi. Milano: Giuffrè, 2008, p. 739.
46LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Org.). Leituras
complementares de direito civil. Salvador: Jus Podivm, 2007, p. 21-36, p. 26.
47AFONSO DA SILVA, Virgílio. Constitucionalização do direito. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 171–172.
48Veja sobre as confi gurações espacio-temporais (existência, validade e efi cácia) e as dimensões (formais, substanciais
e prospectivas) do Direito civil constitucional FACHIN, Luiz Edson. A “Reconstitucionalização” do direito
civil brasileiro., p. 14–20.
49Veja MORAES, Maria Cecília Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional. Instituto de direito civil.
Disponível em http//www.idcivil.com.br. Acesso em: 30 de out.2008.
50FACHIN, Luiz Edson. O direito civil brasileiro contemporâneo e a principiologia axiológica constitucional. In:
ARRUDA ALVIM; ARRUDA ALVIM, Angélica. Revista autônoma de direito privado. Curitiba, n. 1, p. 161-178,
out/dez. 2006, p. 176.
51AMARAL, Francisco. O código civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. In: TARTUCE,
Flávio; CASTILHO, Ricardo. Direito Civil (Coords). Estudos em homenagem à professora Giselda Maria Fernandes
Novaes Hironaka. São Paulo: Método, 2006, p. 1-24, p. 15, 16, 19, 20 e 22; NEVES, A. Castanheira. O actual
problema metodológico da interpretação jurídica. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, v. 1, p. 13–20.
52GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar Duque Estrada 3.ed. Fundação
Getúlio Vargas: Rio de Janeiro, 2006.
53HESPANHA, Antônio Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica européia. 2.ed. Lisboa: Publicações Europa–
América, 1998, p. 19.
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contemporaneidade é construir um futuro sem ser a sombra do que passou, por meio da “reconstitucionalização”
do Direito,54 mormente o civil, dado que o Direito preocupa-se com a tutela dos centros de interesses
juridicamente relevantes, protegidos pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade
material e da formal, da cidadania formal e da material e da solidariedade constitucional, a fi m de saber
para que serve e a quem serve o Direito.55
Nesse passo, qualquer tipo de instituto jurídico se submete à normativa constitucional, o que minora
a fratura entre a realidade social e a legislação posta, sendo certo que o Direito Civil constitucionalizado
concretiza os valores sociais efetivos.56
Diversos são os exemplos da infl uência constitucional no direito civil e no do consumidor, a saber,
a situação jurídica proprietária não vista como um direito individual de característica absoluta, mas plural
e vinculada à função social e à ambiental; as famílias deixam de ter hierarquia, se igualam no plano interno
e se pluralizam na origem – casamento, famílias simultâneas ou redes familiares, famílias gestadas
do poli-amor, união estável, uniões homoafetivas, anaprental, eudemonista, monoparental; as relações
contratuais sofrem intervenções estatais voltadas para os interesses de categorias específi cas como o consumidor,
o idoso, a criança e o adolescente, como também se amplifi cam as hipóteses de incumprimento
obrigacional ou de cumprimento defeituoso; desloca-se o eixo da responsabilidade civil para o direito
de danos com a perspectiva analisada a partir do dano sofrido pela vítima e não pela conduta do ofensor.
Busca-se, com isso, a justiça socioambiental.
A Constituição Federal de 1988 detém dez passagens sobre direitos da personalidade, quatorze
sobre direito de família, nove sobre direito contratual, doze sobre responsabilidade civil, trinta acerca da
situação jurídica proprietária, duas sobre direito sucessório, cinco sobre pessoas jurídicas não-empresárias,
afora as situações atinentes ao direito do consumidor, ao direito do trabalho, ao direito ambiental e ao
direito empresarial.58
Outra crítica que se faz à constitucionalização do direito civil é a de o fenômeno ter surgido
como um contraponto aos Códigos Civis oitocentistas, todavia viu-se uma revisão (p. ex. BGB, em
2002) e o surgimento de novos códigos no mundo, por exemplo o da Hungria em 1959 e o do Brasil em
2002, sendo o Código Civil “lei básica, mas não global, do nosso direito privado”, como apõe o art. 1º
do Código Civil brasileiro de 2002: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”59 redação
praticamente igual a do art. 2º do Código Civil de 1916 – “Todo homem é capaz de direitos e obrigações
na ordem civil”. À vista disso, Francisco Amaral afi rma que o referido artigo se estabelece “como âmbito
prioritário de efi cácia de direitos, pretensões e ações de natureza civil, o que deve levar ao refl uxo
a ideia de interpenetração supra mencionada do direito civil com o constitucional, nos termos formulados”.
60
_____________________________
54FACHIN, Luiz Edson. A “Reconstitucionalização” do direito civil brasileiro., p. 14.
55FACHIN, Luiz Edson. A “Reconstitucionalização” do direito civil brasileiro., p. 20.
56LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo:
RT, 1998, p. 253.
57Veja PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, p. 582–589; FACHIN, Luiz Edson. A construção do direito privado contemporâneo na experiência
crítico–doutrinária brasileira a partir do catálogo mínimo para o direito civil–constitucional. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2008, p. 12–17; MORAES, Maria Celina Bodin.
Perspectivas a partir do direito civil–constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo.
São Paulo: Atlas, 2008, p. 29–41, p. 29–38; FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro. Rumos cruzados do direito
civil pós–1988 e do constitucionalismo hoje. In: TEPEDINO, Gustavo (org.). Direito civil contemporâneo. São
Paulo: Atlas, 2008, p. 262–281; LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005,
p. 1–15.
58LÔBO, Paulo Luiz Netto. A constitucionalização do direito civil., p. 20.
59AMARAL, Francisco. Direito civil. Introdução. 7.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 191-192
60AMARAL, Francisco. Direito civil. Introdução., p. 192.
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Esse entendimento aponta que o Código Civil está submetido à Constituição e não deve conter
regras inconstitucionais, o que não ocorre na realidade, como, por exemplo, se extrai do art. 1.641, II
do CC, que impõe ao maior de sessenta anos a obrigatoriedade do casamento sob o regime da separação
obrigatória de bens, em homenagem a uma pseudo prevenção patrimonial, quando, na realidade, afastase
do caso concreto e ofende o princípio da isonomia, da dignidade da pessoa humana e da vedação do
retrocesso social, entre outros,61 a afastar a argumentação aduzida pelo Professor da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, até porque o artigo que apóia a sua premissa é praticamente idêntico ao do CC/16, que
reconhecidamente é ultrapassado, como reconhecido pelo próprio Francisco Amaral em sua obra.62
Mantém-se o entendimento de que os problemas sociais não podem ser resolvidos exclusivamente
pelo Direito, o que viceja a transdisciplinariedade desta ciência prática com as demais ciências existentes,
em razão de a sociedade ser plural e não monolítica. A constitucionalização é um dos caminhos para a
realização justa do Direito, sem olvidar que muitas questões jurídicas estão submetidas à arbitragem (v.g.
resolução de diversos contratos particulares), a sobrelevar a importância de conscientização dos árbitros
para essa pluralidade metodológica, das formas de expressão do Direito e da própria sociedade.
O Código Civil de 2002 e a Constituição continuam interligados, cuja aplicação do primeiro demanda
cuidados, “para que o núcleo normativo da Constituição sobre direito civil se expresse com vigor”,
de acordo com Paulo Lôbo.63
A única situação que não pode acontecer é a dos intérpretes não se atentarem para esses fatores
e arrumarem, segundo Sérgio Staut, uma “vestimenta nova para um corpo em decomposição”. Noutros
termos, querer resolver as questões jurídicas com soluções universais, abstratas e vistas a partir de um só
prisma.64 Cada de decisão é parte para a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, congregadora
dos interesses de todos e não somente dos mais afortunados (CF/88, art. 3º). Alude Paulo Lôbo que a
“certeza da permanente constitucionalização, com a revitalização de sentido de suas normas, assegurar-lhe
–à durabilidade pela pertinência com as mutações sociais”,65 tornando-se precisa a frase de Carlos Rêgo:
“Que as lanternas do direito civil–constitucional permaneçam acesas. Para sempre”.66
A perspectiva civil constitucional, portanto, abarca os direitos individuais (aqueles que tutelam a
autonomia privada da pessoa humana ou jurídica, para que haja com liberdade e não sofra a interferência
indevida do Estado ou de terceiro) e os direitos coletivos (direitos ou interesses difusos, coletivos em
sentido estrito e, por fi cção legal, os individuais homogêneos), como se extrai do art. 5º da Constituição
Federal de 1988 e do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, com a normativa constitucional vinculando
integralmente toda a comunidade social. Frise-se que muitos desses direitos podem ser considerados
fundamentais – “direitos que tutelam, no plano global ou no plano interno, de forma direta ou até refl exa,
a vida e sua existência com dignidade, abrangendo até mesmo direitos de outras espécies de seres vivos,
além da espécie humana”, como aludido por Gregório Assagra.67
_____________________________
61Veja sobre o exemplo de inconstitucionalidade em FROTA, Pablo Malheiros da Cunha; ALVES, Vivian de Assis.
O regime de bens do casamento da pessoa maior de sessenta anos: a inconstitucionalidade da obrigatoriedade
do regime de separação de bens. In: NUNES, João batista Amorim de Vilhena (Coord.). Família e Sucessões: refl
exões atuais. Curitiba: Juruá Editora, 2009, v. 1, p. 333-353. Veja uma crítica acurada ao Código Civil de 2002
em BARROSO, Lucas Abreu; SOARES, Mário Lúcio Quintão. A dimensão dialética do novo código civil em uma
perspectiva principiológica. In: BARROSO, Lucas Abreu (Org.). Introdução crítica ao código civil. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 1–14.
62AMARAL, Francisco. Direito civil. Introdução., p. 191.
63LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: parte geral., p. 43
64STAUT JUNIOR, Sérgio Said. Poder e Contrato(s): um diálogo com Michel Foucault. In: FACHIN, Luiz Edson
et al. (Orgs.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, v.2, p. 267–288.
65LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: parte geral., p. 43.
66FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro. Rumos cruzados do direito civil pós–1988 e do constitucionalismo
hoje., p. 281.
67ASSAGRA DE ALMEIDA, Gregório. Direito material coletivo: superação da summa divisio direito público e
direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 603.
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A Globalização, o Direito Civil Constitucional e os Contratos na Sociedade
Contemporânea
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Menelick de Carvalho Neto68 alude que não existe um só direito que seja individual e que não
tenha repercussão social e nenhum direito coletivo que não atinja a esfera íntima do cidadão, a tornar somente
didática uma possível nova dicotomia individual e coletivo, como propugnada Gregório Assagra.69
Não obstante a mencionada discussão, os direitos individuais e os coletivos são solapados pela globalização,
já que a sua teoria econômica neoliberal fomenta “a propriedade privada, a grande corporação,
o mercado livre de restrições políticas, sociais ou culturais, a tecnifi cação crescente e generalizada dos
processos de trabalho e produção, produtividade e a lucratividade”, como destacado por Ianni.70
Analisados os efeitos da globalziação na sociedade, no Estado e a metodologia civil constitucional,
como se tutelam os direitos individuais e coletivos no âmbito contratual, tendo em vista ser o contrato uma
síntese dessas realidades?
3. A PERSPECTIVA CIVIL CONSTITUCIONAL DO CONTRATO COMO CONTRAPONTO
AOS EFEITOS DELETÉRIOS DA GLOBALIZAÇÃO
Por conta desses fatos retratados nos tópicos anteriores, os contratos ganham relevo de há muito,
chegando ao ponto de Jorge Mosset Iturraspe, em sua obra Teoria general del contrato, apontar que nas
economias liberais todas as pessoas estão no âmbito de uma relação contratual, mesmo as que não possuem
bens materiais. Lembre-se a lição de Orlando Gomes,71 que prega serem os contratos conteúdo
(plexo de direitos e deveres para as partes e para terceiros) e efi cácia (atividade produtora de uma relação
jurídica que gera efeitos para as partes e para terceiros).
Uma maneira de mitigar os efeitos da globalziação econômica é a utilização pelo intérprete das três dimensões
(formal, material e prospectiva) da constitucionalização do Direito, explicadas por Fachin:
_____________________________
68NETO, Menelick de Carvalho. Os direitos fundamentais e a crise institucional do Distrito Federal. Palestra proferida
na Faculdade Processus do Distrito Federal em 22 de fevereiro de 2010.
69ASSAGRA DE ALMEIDA, Gregório. Direito material coletivo: superação da summa divisio direito público e
direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 603.
70IANNI, Octavio. A era do globalismo. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 263-264.
71GOMES, Orlando. Contratos. 26.ed. atualizadores Antonio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo
Marino. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 14-15.
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Pablo Malheiros da Cunha Frota
“É possível encetar pela dimensão formal, como se explica. A Constituição Federal brasileira
de 1988 ao ser apreendida tão só em tal horizonte se reduz ao texto positivado, sem embargo
do relevo, por certo, do qual se reveste o discurso jurídico normativo positivado. É degrau
primeiro, elementar regramento proeminente, necessário, mas insufi ciente.
Sobreleva ponderar, então, a estatura substancial que se encontra acima das normas positivadas,
bem assim dos princípios expressos que podem, eventualmente, atuar como regras
para além de serem mandados de otimização. Complementa e suplementa o norte formal
anteriormente referido, indo adiante até a aptidão de inserir no sentido da constitucionalização
os princípios implícitos e aqueles decorrentes de princípios ou regras constitucionais
expressas. São esses dois primeiros patamares, entre si conjugados, o âmbito compreensivo
da percepção intrassistemática do ordenamento.
Não obstante, o desafi o é apreender extrassistematicamente o sentido de possibilidade da
constitucionalização como ação permanente, viabilizada na força criativa dos fatos sociais
que se projetam para o Direito, na doutrina, na legislação e na jurisprudência, por meio da
qual os signifi cados se constroem e refundam de modo incessante, sem juízos apriorísticos
de exclusão. Nessa toada, emerge o mais relevante desses horizontes que é a dimensão prospectiva
dessa travessia. O compromisso se fi rma com essa constante travessia que capta os
sentidos histórico-culturais dos códigos e reescreve, por intermédio da ressignifi cação dessas
balizas linguísticas, os limites e as possibilidades emancipatórias do próprio Direito”.72
A concepção constitucionalizada e prospectiva do Direito combate os efeitos da globalização
econômica, a fi m de gerar mais igualdade, cidadania e solidariedade substancial a todos, mormente na defesa
de seus dos interesses individuais e sociais, que estão conformados por toda principiologia lastreada
em um ordenamento jurídico.
Destaca Paulo Lôbo que a desconsideração dos direitos nacionais, tendo em vista a globalização
econômica, ocorre pela aposição massifi cada de condições gerais contratuais, cuja força é semelhante a de
lei, por as características destas condições serem “a generalidade, a abstração, a uniformidade e a inalterabilidade”.
Dessa maneira, as referidas condições incidem sobre todos os destinatários; são padronizadas
para os tipos de serviços que açambarcam, assim como são predispostas abstratamente para situações
futuras e inalteráveis por quem a elas adere. Essas condições gerais são utilizadas no mundo inteiro.73
Dessa maneira, surgem os seguintes questionamentos na contemporaneidade: o que é contrato?
quais são as suas funções? existe diferença entre o contrato civil e os outros contratos? há um conjunto
principiológico supracontratual que transita, a partir da teoria dos contratos, tanto no ramo cível como nos
outros?
Nesse passo, os pactos podem expressar o querer de quem detém o poder na mencionada relação
jurídica e gerar desequilíbrios entre as partes, mormente em uma sociedade em que os seres humanos não
são cercados por seres humanos, e sim por objetos – sociedade de hiperconsumo e tempos de consumismo.
Certo é que os contratos não podem ser máquinas de alienação de seus protagonistas nem instrumentos de
dominação do futuro pelas partes, como se pregava no período liberal. Avulta dessa afi rmação a importância
dos contratos na sociedade contemporânea, da sua principiologia e dos deveres inerentes aos pactos,
porque estes podem ser meios de inclusão e de exclusão social.
Pensa-se que uma adequada leitura da atividade contratual no século XXI poderá evitar que os
obstáculos legislativos, a distribuição assimétrica de riquezas, a apropriação desfuncionalizada das titularidades
e que a intervenção estatal a favor dos interesses dominantes e mercadológicos se mantenham
na sociedade atual, o que exigirá estudo profundo e sério do intérprete, bem como uma postura pró–ativa
deste na concreção do Direito justo ao caso concreto, mesmo que seja contra legem.
Ressalte-se, contudo, que esse não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça em muitos casos,
como o descrito no Enunciado 381 – “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício,
da abusividade das cláusulas.” Este enunciado absorve de forma clara a ideologia global e neoliberal e
despreza as dimensões civis constitucionais atinentes aos contratos. Como se sabe, os contratos bancários
são um manancial de abusividades e de injustiças em relação às partes aderentes, contrariamente ao posto
nos arts. 1º, 3º e 5º da Constituição Federal de 1988. Dessa forma, qual é a razão de o aludido tribunal
editar enunciado com tal conteúdo e que viola frontalmente a principiologia contratual, civil, consumerista
e constitucional?
Os contratantes, por conseguinte, devem ter um comportamento ético e solidário que, num passado
próximo, não se buscava, uma vez que o primacial era a segurança dos pactos, consistente no seu cumprimento,
independentemente da análise da essência de qualquer contrato, que é a ideia de comutatividade
(equilíbrio nos direitos e deveres das partes), também porque é direta a efi cácia dos direitos fundamentais
nas relações entre particulares, inclusive nas contratuais.
Por isso, utiliza-se uma ideia conceitual74 contemporânea de contrato, construída a partir de uma
perspectiva civil constitucional e pós-positivista, aduzindo para uma atividade que conjuga objetivamente
interesses materiais e/ou existenciais para o atingimento de um fi m pelos contratantes, cuja autonomia
privada molda-se à observância dos deveres contratuais gerais (função social, função ambiental, boa-fé,
_____________________________
72FACHIN, Luiz Edson. Apresentação. In: CORTIANO JÚNIOR, Eroulths; MEIRELLES, Jussara Maria Leal de;
FACHIN, Luiz Edson; NALIN, Paulo (Coords.). Apontamentos críticos para o direito civil brasileiro contemporâneo:
anais do projeto de pesquisa virada de copérnico. Curitiba: Juruá, 2009, p. 9-15, p. 12-13.
73LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: parte geral., p. 63.
74Veja sobre o conceito contemporâneo de contrato em NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno. 2.ed.
Curitiba: Juruá, 2006.
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equivalência material, solidariedade, confi ança, informação, equidade/justiça e cooperação), haja vista a
produção de efeitos jurídicos do pacto perante terceiros, de forma direta ou indireta.75
Os deveres contratuais gerais são multifacetários, essenciais, conformam a atividade contratual,
são mais importantes que a obrigação principal e que o dever principal, não estão atrelados ao adimplemento,
mas o vincula, podem ser demandados autonomamente, detêm efi cácia erga omnes e interpartes e
fortalecem viés fi losófi co do paradigma judicativo decisório, do inferencialismo e da argumentação, já que
somente as peculiaridades do caso concreto ensejarão a real e a efetiva observância dos seus postulados.
Isso porque se constrói uma nova categoria jurídica, um gênero em que se agrupam pela afi nidade
de conceitos e de funções, direitos fundamentais (alguns deles) normas, cláusulas gerais, tratados,
costumes, conceitos jurídicos indeterminados, conceitos determinados pela função, direitos subjetivos,
deveres jurídicos, poderes formativos, pretensões, ônus jurídicos, sujeições, direito potestativo funcionalizado
– cooperação impositiva – apostos nesta categoria denominada deveres contratuais gerais. Estes
refl etem e plasmam os contratos ao modo e feição da axiologia constitucional e infraconstitucional, mormente
diante da sociedade transmoderna em que vivemos.
O dever contratual da solidariedade consagra a mútua relação entre os sujeitos concretos e a
coletividade, em que se repartem responsabilidades para que se atinja o horizonte ético e coletivo traçado
pela Constituição Federal para os contratos, a efetivar o valor fundamental do bem comum, incluindo-se
a possibilidade de conteúdo contratual de natureza não–material, mas com economicidade (Código Civil
italiano, art. 1174 e Projeto Preliminar de Código Europeu dos Contratos, art. 26), o que torna o conteúdo
contratual útil para a sociedade. Não se confunde com a solidariedade obrigacional ou com aquela atinente
ao dever de reparar.
O dever contratual geral da cooperação surgiu com a mudança de concepção da obrigação que
passou de estática e desfuncionalizada para uma percepção complexa, unitária e de cooperação entre os
seus integrantes e terceiros, que não poderão prejudicar, mas sim facilitar o adimplemento contratual, mormente
em uma fase em que existem em quantidade diminuta no seio social.
Do dever de colaboração passa-se para o dever contratual geral de confi ança (criação legítima de
expectativas em outrem), pois esta esteia a atividade contratual justa e coíbe o abuso de direito, já que ela
rege a atividade contratual de forma integral, inclusive podendo ser causa (tutela da confi ança) ou efeito
(responsabilidade por quebra do dever de confi ança) de uma atividade contratual.
A funcionalização social e ambiental do contrato não se confunde com a solidariedade contratual,
porque as aludidas funções detêm a fi nalidade de promover o ser humano no âmbito social (perfi l da
função social) em relação ao meio ambiente (fi to da função ambiental, visto que o meio ambiente equilibrado
é direito fundamental da humanidade).
O dever contratual geral da função social conjuga o interesse das partes com o da sociedade, sem
destruir os interesses individuais, tendo em vista o papel desempenhado pelos contratos na sociedade,
mormente no que se refere aos efeitos externos diretos e indiretos produzidos perante terceiros e internos
relativos aos contratantes. Esse dever lapida e não limita a autonomia privada dos contratantes.
O dever contratual geral da função ambiental condiciona o contrato e as partes, ao conformar a
autonomia privada à preservação e conservação do meio ambiente para as presentes e para as futuras gerações,
a atender o art. 225 da CF/88 e a promover a cidadania e a justiça ambientais.
O dever contratual geral da equivalência material traduz o valor igualdade, que, por sua vez, remonta
à concretização da justiça, da segurança no direito e do bem comum, ao reconhecer as igualdades e
as desigualdades hauridas do caso concreto, cujo resultado equânime será extraído da adequação de ambas
as situações, no que toca à equivalência de direitos e deveres.
A boa-fé é dever contratual geral que moraliza o contrato, já que devem as partes agir com honestidade,
lealdade (Enunciado CJF 26), lisura, probidade nas fases contratuais, sem que uma das partes obte-
_____________________________
75FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Os deveres contratuais gerais nas relações civis e de consumo. Juruá: Curitiba.
Trabalho no prelo e com previsão de publicação para 2010.
Pablo Malheiros da Cunha Frota
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nha com o pacto vantagens desmedidas, respeitando-se a legítima expectativa dos contratantes, mesmo
que não haja previsão legal ou contratual.
A imbricação da intenção com a conduta de forma intensa e inseparável tornam desnecessária as
divisões procedidas pela doutrina em relação à boa-fé, já que o termo boa-fé ou boa-fé conglobante abarcaria
todas as espécies relatadas.
A boa-fé conglobante na desmerece a intenção e a conduta, porque além de uni-las, preocupa-se
com as expectativas geradas pelas partes entre si e perante terceiros. Importa é a relação intersubjetiva e
não a análise da conduta e/ou da intenção de maneira fragmentada.
Passa-se do voluntarismo para a objetivação das expectativas e não das condutas ou das intenções.
Faz-se um paralelo com a mudança da responsabilidade civil, cujo critério de valoração da determinação
da responsabilidade é a culpa (subjetiva) ou o risco (objetiva), para o direito de danos, em que o critério
de valoração da responsabilidade é o dano sofrido ou a sofrer por parte da vítima. Diante disso, o intérprete
se preocupará, ao analisar a boa-fé conglobante no caso concreto, com as expectativas geradas e não
cumpridas ou realizadas de maneira defeituosa.
O dever contratual geral da informação leva o fornecedor em qualquer relação jurídica a informar
o contratante sobre as características do serviço ou do bem oferecido, bem como acerca do conteúdo do
contrato, a fi m de que quem contrate apreenda efetivamente o pacto.
A justiça como dever contratual geral abarca a relação intersubjetiva dos contratantes, eliminando
os excessos comportamentais, econômicos e jurídicos, bem como destes com a sociedade no momento
em que obsta qualquer ato ou atividade de terceiros que prejudiquem a execução do pacto. Dessa forma,
o dever contratual geral de justiça não se confunde com o da equivalência material, já que abarca toda a
atividade dos contratantes e não se restringe, como o dever de equivalência, à justeza das prestações.
Torna-se imprescindível ao estudioso das relações contratuais conjugar essas nuances teóricas com
a prática cotidiana, a fi m de que se construa diariamente um direito contratual real, efetivo e concreto,
distante do contrato concebido de forma contemplativa, abstrata, opressora e irreal, sobretudo em uma
época de hiperconsumo, de necessidade de contratar, e não mais de vontade de contratar, sendo a maioria
dos pactos realizada por adesão às condições gerais, impostas unilateralmente por uma das partes.
A concretização dos direitos fundamentais, destarte, perpassa a necessária leitura civil constitucional
dos institutos jurídicos,76 que submete a interpretação destes aos valores e aos princípios constitucionais,
com o objetivo de minorar a distância entre o Direito posto e a realidade social e que abarca as relações
contratuais e os seus múltiplos efeitos.
Com isso, busca-se a utopia de realização justa do Direito e de uma sociedade solidária, sem que
haja exclusões inclusivas, com o coletivo domesticando o individual e tornando-se mais individual do
que o próprio individual, sendo factível se pensar as utopias. Isso porque o Direito torna-se um mito, se
não tivermos por utopia a concreção da realidade, mormente diante dos efeitos deletérios globalização
econômica e da importância dos contratos para a sociedade contemporânea, até porque, como aponta
Stephany Griffi th-Jones, baseada em Joseph Stiglitz, “a mão do mercado é invisível porque ela simplesmente
não existe”,77 no que tange à correta regulação dos interesses sociais.
3. O CASO DA IRANIANA CONDENADA À PENA DE MORTE POR
APEDREJAMENTO - UMA QUESTÃO DE VALORES
3.1. 1. INTRODUÇÃO
Em maio de 2006, uma mulher iraniana chamada Sakineh Mohammadi Ashtiani, de 43
anos, foi presa no Irã por ter sido condenado por um tribunal na Província do
Azerbaijão Ocidental, que a considerou culpada por manter relações ilícitas com dois
homens após a morte de seu marido. Pelo crime ela recebeu 99 chibatadas, mas, não
bastasse a punição, em setembro do mesmo ano ela também foi sentenciada por outro
crime, o crime de adultério, e condenada à pena de morte por lapidação, ou
apedrejamento. De acordo com a lei islâmica, a sharia,1 crimes como assassinato,
estupro, tráfico de drogas, assalto à mão armada e adultério são passíveis de serem
punidos por apedrejamento.
A notícia da condenação da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani à pena de morte por
apedrejamento pela justiça de seu país vem provocando comoção na comunidade
internacional. Manifestações de várias partes do mundo têm sido feitas com a finalidade
de salvar a vida da iraniana. De acordo com informações da porta-voz do Ministério do
Exterior francês à agência de notícias EFE de Paris, vários países europeus estão
analisando todos os meios para salvar a vida de Sakineh Mohammadi Ashtiani.2
Um dos filhos da iraniana divulgou uma carta endereçada às Nações Unidas solicitando
a ajuda do organismo internacional no caso. “Pedimos à ONU que se envolva neste
caso, que uma comissão neutra internacional seja enviada ao Irã para analisar todas
essas questões", disse o jovem Sajjad, de 22 anos. Na carta, o filho de Sakineh diz que
há cinco anos tem pesadelos com sua mãe sendo apedrejada e que tem certeza de sua
inocência. "Temos recorrido à comunidade internacional e às pessoas em todo o mundo
que queiram nos ajudar", diz Sajjad.3
No Brasil, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou uma moção solicitando ao
governo do Irã a comutação da pena e o perdão da iraniana Sakineh Mohammadi
Ashtiani. Parlamentares da oposição destacaram as boas relações do presidente Luiz
1 A charia, chariá, xaria ou xariá, também grafada sharia, shariah, shari'a ou syariah, é o nome que se dá
ao código de leis do islamismo. Em várias sociedades islâmicas, ao contrário da maioria das sociedades
ocidentais dos nossos tempos, não há separação entre a religião e o direito, todas as leis sendo religiosas e
baseadas ou nas escrituras sagradas ou nas opiniões de líderes religiosos. O corão é a mais importante
fonte do direito islâmico.
2 Disponível em:
http://www.google.com/hostednews/epa/article/ALeqM5jOQQSUxaIQxzyfVraSzV44Qkdx6A. Acesso
em 16.8.2010.
3 Disponível em: http://oglobo.globo.com/mundo/mat/2010/08/12/filho-de-iraniana-condenada-mortepede-
ajuda-da-onu-917386248.asp. Acesso em 16.8.2010.
4
Inácio Lula da Silva com o governo do Irã, enquanto os governistas destacaram que o
próprio Lula já sugeriu dar asilo à iraniana no Brasil.4 “Apelo ao líder supremo do Irã,
Mahmoud Ahmadinejad, que permita ao Brasil conceder asilo a esta mulher”, disse o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva.5
Inconformado, o ministro dos Direitos Humanos chegou a chamar de ditador o
presidente do Irã Mahmoud Ahmadinejad, e disse que o governo brasileiro continua
negociando com Teerã para que Sakineh Mohamadi Ashtiani seja enviada ao Brasil na
condição de asilada ou refugiada política.6
Até mesmo o Parlamento do MERCOSUL7 (PARLASUL) manifestou sua indignação
contra a sentença de morte por apedrejamento imposta à iraniana Sakineh Ashanti. Por
meio da aprovação unânime de projeto de declaração, os parlamentares pediram à
Justiça do Irã que reveja a sentença por não contribuir para que o País se integre à
comunidade internacional. Para eles, a condenação à morte, de acordo com a
declaração, afronta de modo absolutamente inaceitável os direitos humanos
fundamentais, particularmente os relativos às mulheres. Os parlamentares manifestaram
a disposição dos países integrantes do Mercosul de receberem Sakineh como refugiada,
por motivos humanitários, se ela assim o desejar.8
Entretanto, o presidente do Irã Mahmoud Ahmadinejad afirmou que a iraniana Sakineh
Ashtiani foi condenada à morte pela justiça de seu País e não deve ser enviada ao Brasil,
mesmo após a oferta de asilo feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em
entrevista transmitida pelo canal de televisão iraniano Press TV, Ahmadinejad afirmou
esperar que o caso de Ashtiani seja resolvido, e disse que o poder Judiciário do Irã não
concordou com a oferta brasileira. "Os juízes são independentes no Irã. Eu conversei
com o chefe do Judiciário, mas o Judiciário não concordou com a oferta de asilo", disse
Ahmadinejad em suas primeiras declarações públicas a respeito da oferta brasileira. Na
4 Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/08/camara-pede-perdao-e-oferece-asiloiraniana-
condenada-por-adulterio.html. Acesso em 16.8.2010.
5 Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/07/100731_lula_sakineh_ira_cq.shtml.
Acesso em 16.8.2010.
6 Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,ministro-chama-ahmadinejad-deditador-
e-apela-por-vida-de-sakineh,595925,0.htm. Acesso em 16.8.2010.
7 Bloco econômico formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, com o objetivo de criar um
mercado comum com livre circulação de bens e serviços, adotar uma política externa comum e
harmonizar legislações nacionais, tendo em vista uma maior integração. A adesão da Venezuela ao
Mercosul já foi aprovada por Brasil, Argentina e Uruguai mas ainda precisa ser aprovada pelo Paraguai.
Chile, Bolívia, Peru, Colômbia e Equador são países associados, ou seja, podem participar como
convidados de reuniões do bloco.
8 Disponível em: http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/DIREITOS-HUMANOS/149983-
PARLASUL-CONDENA-APEDREJAMENTO-DE-IRANIANA.html. Acesso em 16.8.2010.
5
entrevista, que foi transmitida com legendas em inglês, o presidente iraniano disse ainda
que enviar a condenada ao Brasil poderia prejudicar Lula. "Eu acho que não é
necessário criar um problema para o presidente Lula e levá-la ao Brasil. Nós estamos
preparados para exportar nossa tecnologia para o Brasil e não este tipo de gente", disse
Ahmadinejad.
Posteriormente, a embaixada do Irã no Brasil divulgou uma declaração à imprensa onde
afirma que o governo do país considerou a oferta do presidente Lula um pedido de um
país amigo baseado nos sentimentos puramente humanitários, mas lista alguns
argumentos para não enviá-la ao país. "Quais são as consequências desse tipo de
tratamento com os criminosos e assassinos? Será que esse ato não promoverá e
incentivará a pratica de outros crimes?", diz o comunicado. "Será que a sociedade
brasileira e o Brasil têm que ter, no futuro, um lugar dos criminosos de outros países em
seu território?"
Por meio do documento, a representação diplomática iraniana em Brasília afirma que,
além de adultério, Ashtiani é acusada pela morte de seu marido, o que seria o crime
principal que pesa contra ela. "A senhora Sakineh Mohammadi, há alguns anos,
praticou um crime de homicídio contra seu marido, pelo qual foi processada e presa.
(...). Por essa razão, o crime principal praticado pela cidadã iraniana é o de homicídio”.9
Independentemente de qual seja o resultado final do julgamento da mulher iraniana, seja
ela condenada à pena de morte ou não, por apedrejamento, enforcamento ou qualquer
outro meio cruel permitido pelas leis do País do Presidente Mahmoud Ahmadinejad, o
ponto de interesse que será explorado neste artigo é a questão dos diferentes valores que
embasam o ordenamento jurídico e as condutas dos indivíduos integrantes das
sociedades que compõem a comunidade internacional.
2. O CONCEITO DE BOM
Nada mais natural e previsível que membros de sociedades ocidentais fiquem chocados
ao se deparar com a notícia de que uma pessoa foi condenada à pena de morte e será
executada por apedrejamento, já que as leis dos ordenamentos jurídicos ocidentais
9 Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,ahmadinejad-diz-que-iranianacondenada-
nao-sera-enviada-ao-brasil,595887,0.htm. Acesso em 16.8.2010.
6
repudiam e condenam a prática de tais atos. A Declaração Universal dos Direitos do
Homem10 estabelece, em seu artigo 3º, que “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade
e a segurança pessoal”, e que “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento
cruel, desumano ou degradante”. Idêntica redação está inserida no artigo 5º, inciso III da
Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.
Mas quem ou o quê me dá o direito de dizer que a minha cultura, as minhas leis e os
meus valores são bons e corretos e devem prevalecer sobre as demais comunidades
integrantes da sociedade internacional? Quais as razões para que os valores e as leis
iranianas sejam considerados injustos e devam ser modificados e adaptados àqueles
aceitos segundo o exclusivo ponto de vista ocidental?
É muito fácil fazer julgamentos em nosso dia a dia apontando a verdade ética. Quando
digo que determinada lei é justa ou injusta; que determinado sujeito é bom ou mal;
quando pergunto: o que eu poderia fazer? ou afirmo que é errado fazer isso; ou ainda
quando julgo ser a paciência uma virtude e a embriaguez um vício, estou na verdade
fazendo julgamentos de acordo com a minha concepção ética. Isto quer dizer que
quando uso palavras como bom ou mal, certo ou errado, e virtude ou vício, estou
fazendo julgamentos éticos concebidos nos moldes da cultura em que fui criado e estou
inserido, a cultura ocidental. Mas quais são as razões para dizer que algo está certo ou
errado? Essa resposta tem sido dada por filósofos éticos e estudiosos, mas nenhuma, até
agora, foi satisfatória.11
Tudo depende do conceito de conduta humana e é a ela que a ética está mais
intimamente associada, sendo o mais comum e geral objeto de interesse dos
julgamentos éticos. Quando digo que um homem é bom, comumente digo que ele age
corretamente; quando digo que a embriaguez é um vício, quero dizer que beber é errado.
Entretanto, não posso dizer que a ética está apenas relacionada à conduta humana.
Outras coisas podem também ser consideradas boas ou ruins. Determinado almoço ou
automóvel, por exemplo, pode ser considerado bom para uma pessoa e ruim para outra.
A noção do que é bom e o que é ruim pode variar de um indivíduo para o outro. Nem
todas as condutas podem ser consideradas boas, algumas podem ser consideradas ruins
e outras podem ser consideradas indiferentes. Por isso verifico que o bom denota
10 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM. Adotada e proclamada pela
Resolução 217 da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.
11 MOORE, George Edward. Principia Ethica. Cambridge, UK. Cambridge University Press, 1999, p. 53.
7
algumas propriedades que são comuns não apenas em condutas, mas em todas as coisas,
tendo esse conceito um valor em si mesmo.
Mas então o que é bom? Como pode ele ser definido? Surpreendentemente, George
Moore diz que: “bom é bom e ponto final.” Ele não pode ser definido e isso é tudo o
que ele tem a dizer sobre isto. Essa é a mais fundamental questão na ética, mesmo que
não seja ainda precisa. O objetivo principal da ética é dar razões corretas para pensar
que isso ou aquilo é bom, e não apenas defini-lo.12
O bom não se refere somente à conduta humana e sim à propriedades das coisas. É o
que os filósofos chamam de Falácia Naturalística. Não é o bom que define as coisas, e
sim as coisas boas (prazerosas) que definem o que é bom. Bom é o que é bom. A
definição de bom é formada pela reunião de várias propriedades. Definições que
descrevem a real natureza dos objetos somente são possíveis quando o objeto ou a
noção em questão é algo complexo, como, p.ex., um cavalo, que tem diferentes
propriedades e qualidades que podem ser enumeradas. Posso dizer que uma casa é boa
porque é confortável, segura, íntima, estável. Bom é simplesmente uma noção que não
pode ser explicada de diferentes maneiras, como, p. ex., uma cor – amarelo é amarelo.
“É um daqueles inumeráveis objetos de pensamento que são incapazes de serem
definidos porque eles são os últimos termos de referência, segundo o qual tudo que seja
capaz de definir algo tem de ser definido”.13 Bom é a redução da própria linguagem
como um ponto de partida. Pode ser um meio e um fim. É um valor e ele pode ser
relativo. Não posso dizer que uma casa é algo bom em si, pois é algo relativo, é um
meio. No fundo quero ter ou possuir uma casa porque ela irá me proporcionar um
objetivo maior, um valor absoluto como a felicidade e a liberdade de ter a minha própria
casa. Do mesmo jeito uma arma pode ser considerada boa porque tem características
boas. É um objeto definido. É um meio para a busca de um fim, de um valor absoluto
como a preservação da vida, a segurança e a liberdade.14
George Moore conclui que “a peculiaridade da ética não é apenas investigar as
propriedades da conduta humana, mas sim as propriedades das coisas que podem ser
12 MOORE, George Edward. Principia Ethica. Cambridge, UK. Cambridge University Press, 1999, p. 58.
13 Ibidem, p. 61.
14 Em oposição, Louis Dumont afirma que: “(...) o fim não pode ser o seu próprio meio: ou os pretenso
“valores operatórios” não são absolutamente valores, ou então são valores de segunda ordem (...)”.
DUMONT, Louis. O individualismo, uma perspectiva antropológica da idade moderna. Tradução de
Álvaro Cabral. Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1985, p. 243.
8
consideradas boas ou ruins. Essas propriedades boas ou ruins, por elas mesmas, são
consideradas simples e indefinidas. Todas as relações das coisas com as propriedades
boas ou ruins podem variar de grau em relação a elas mesmas ou em relação a outras
coisas que possuem essas propriedades.”15
3. OS VALORES EM SOCIEDADE
Todavia, acredito que a definição de bom ou ruim das características de uma pessoa ou
de um objetivo está diretamente relacionada com os valores pessoais, subjetivos e
inerentes de cada indivíduo. Mas também não posso me esquecer de que os valores de
uma pessoa são absorvidos do meio e das outras pessoas que com ela convivem em
sociedade.
A incompreensão dos valores enraizados a centenas de anos em uma sociedade diferente
da minha como a islâmica - mais especificamente a sociedade iraniana -, me causa
espanto e me leva a acreditar que esta sociedade esteja em um nível cultural atrasado em
relação ao meu, e por isso gera tanta revolta e comoção por parte da população de vários
países. Mas isso ocorre porque os meus valores, os ocidentais, se contrapõem aos
valores daquela sociedade islâmica.
Indago, não poderia ser o contrário? Não poderiam os iranianos estar chocados e
indignados com os comportamentos e as atitudes da sociedade ocidental simplesmente
pelo fato de não compreenderem os seus valores? Será que realmente a sociedade
islâmica está em um estágio de desenvolvimento cultural inferior em relação ao da
sociedade ocidental? Algumas sociedades orientais podem ver no modo de vida
ocidental e capitalista a concretização de valores que elas julgam ser errados, injustos e
inaceitáveis.
Acredito estar diante de uma questão de valores. Alguns dos valores aceitos pela
sociedade iraniana são incompreensíveis para a sociedade ocidental, e vice-versa, mas
isso não quer dizer que estejam errados ou que não devam ser tolerados. Inicialmente,
torna-se necessária uma explicação mais detalhada do que pode ser entendido por
valores. Normalmente emprego o termo valores quando me refiro a interesses, prazeres,
15 MOORE, George Edward. Principia Ethica. Cambridge, UK. Cambridge University Press, 1999, p.
87-88.
9
gostos, preferências, obrigações morais, desejos, vontades, objetivos, necessidades,
aversão e atração, e muitos outros tipos de orientações seletivas.
“Valores são conceitos de crenças sobre os estados finais ou comportamentos
desejáveis, que transcendem situações específicas, selecionados como guia de
comportamentos e eventos que são ordenados por uma relativa importância. Valores são
crenças evolutivas que sintetizam elementos afetivos e cognitivos para orientar as
pessoas no mundo em que elas vivem”. 16 (tradução nossa)
Ou seja, os valores de uma determinada coletividade são determinados em consenso, e
servem para guiar os comportamentos individuais de seus membros. É claro que em
sentido estrito cada indivíduo pode possuir seus próprios valores, como a escolha de sua
religião, seus investimentos ou seus próprios hábitos de vida, que são determinados por
suas próprias crenças, convicções filosóficas, religiosas, culturais, etc. Mas, vivendo em
sociedade, são obrigados a observarem as normas baseadas nos valores coletivos, sob
pena de ser esse indivíduo excluído do convívio social.
O consenso geral entre os filósofos é no sentido de que os valores possuem um lugar
mais alto na hierarquia interna de uma sociedade do que as atitudes. Na verdade os
valores coletivos de uma determinada sociedade moldam as atitudes dos indivíduos.
Pessoas se referem aos valores quando procuram justificar um determinado
comportamento. Entretanto, para que haja legitimação desses valores, a sociedade, por
meio do poder normativo do Estado, utiliza-se de um instrumento institucional que é o
ordenamento jurídico, petrificando e cristalizando os valores aceitos pela coletividade
na forma de leis erga omnes, a todos impostas.
Normas são baseadas em valores trans-situacionais, ou seja, que prevalecem no âmbito
de uma determinada sociedade no decorrer dos tempos. Os valores são mais duráveis
que as atitudes e condutas dos indivíduos. Pessoas agindo de acordo com valores não se
sentem tão pressionadas como elas se sentiriam se estivessem agindo sob pressão
normativa.
Resumidamente posso definir as cinco características mais comuns entre as definições
de valores. São elas: a) conceitos ou crenças; b) sobre desejos ou estados de
comportamento; c) que transcendem situações específicas; d) para guiar a avaliação de
16 HITLIN, Steven and PILIAVIN, Jane Allyn. Vallues: Reiving a Dormant Concept. Annual Review of
Sociology, 2004, p. 362.
10
comportamentos e eventos; e) e que são ordenados por uma importância relativa.
Assim, verifico também que os valores são determinados por uma variedade de
categorias sociais e suas influências práticas, e que podem variar de acordo com elas,
como a biologia; as raças, etnias e gêneros; a estrutura social; as características
familiares; a faixa etária; a religião; e a nacionalidade de cada indivíduo.17
4. O DIREITO INTERNACIONAL
Em nome da manutenção da ordem e da defesa dos valores ditos universais, o direito
internacional exige, cada vez mais, a justificação por parte dos países da comunidade
internacional de seus atos e declarações, sempre baseadas em argumentações jurídicas
ou, pelo menos, em valores coletivos.
Excelente exemplo foi dado pelo Prof. Luiz Eduardo Abreu18 ao relacionar o direito
internacional com uma grande cidade. “Imagina-se que o direito internacional pertence
a uma cidade onde mora há muito tempo (em que todos, de certa forma, são estranhos,
porque ninguém nasceu ali). Conhece seu bairro em detalhe, outros lhe são muito
familiares e tem aqueles onde ele somente foi rapidamente ou que ele ignora totalmente
e, talvez, use uma ignorância estudada, por razões diferentes: algumas escolhas sobre a
importância das coisas, razões afetivas, a idéia que as pessoas de sua classe moram em
outro lugar ou que ninguém tira proveito de tentar fazê-lo. Apesar disso, ele entende
bem os costumes das pessoas de sua cidade: há costumes que vêm de outro lugar tanto
quanto hábitos desenvolvidos há muito tempo na cidade e que parecem ser
independentes dos habitantes. Ele sabe que não somente há usos peculiares, próprios de
alguns bairros, uma rotina comum que varia de acordo com a hora e o dia, como
também, há pequenas diferenças, semelhanças profundas e semelhanças superficiais.
Em resumo, ele se vira bem nos percursos da cidade e controla as coisas que têm um
interesse para seus negócios.” 19
Posso dizer que grandes metrópoles como Nova York ou São Paulo são espécies de
miniaturas da sociedade internacional. Nelas, diferentes indivíduos, com as mais
diferentes crenças, culturas e valores, habitam bairros ou regiões diversas possuindo
17 HITLIN, Steven and PILIAVIN, Jane Allyn. Vallues: Reiving a Dormant Concept. Annual Review of
Sociology, 2004, p. 368-378.
18 Doutor em antropologia pela UnB e professor do Mestrado em Direito do UniCeub.
19 ABREU, Luiz Eduardo. As diferente tradições jurídicas. Uniceub. 2005.
11
cada qual características próprias, mas que, apesar de tantas divergências, convivem
entre si com uma harmonia relativamente pacifica e fazem parte da mesma cidade. Do
mesmo modo, os 192 países soberanos que integram a sociedade internacional e são
reconhecidos pela Organização das Nações Unidas, convivem, ou pelo menos deveriam
conviver, em um ambiente de harmonia e respeito, cada qual com suas peculiariedades.
O que quero dizer é que, diferentemente do que ocorre nas grandes cidades, no direito
internacional atual não são observadas e respeitadas as diferenças de cada uma das
comunidades que compõe a sociedade internacional. Apesar de não haver um governo
soberano reconhecido e regulador das atitudes dos Estados, de fato, as regras são
simplesmente impostas e definidas pela maioria, no caso a maioria ocidental, sendo os
valores, culturas e tradições das sociedades orientais simplesmente suprimidas. É o que
está ocorrendo no caso em tela, onde a sociedade internacional, com base nos valores
ditos universais e nos direitos humanos, pretende que a justiça do Irã anule a sentença
que condenou, de acordo com as leis válidas e aceitas pelo povo iraniano, uma mulher à
pena de morte pela participação no homicídio de seu esposo.
Jean-Jacques Rosseau falava que a igualdade entre os homens é condição da natureza e
a desigualdade fruto da sociedade.20 Em sentido contrário, Rui Barbosa afirmava que
“não há duas coisas iguais, todas se diversificam.” Para este, “a regra da igualdade
somente consiste em compartilhar desigualmente com os desiguais, na justa medida de
sua desigualdade”, porque “tratar desigualmente os iguais, ou os desiguais com
igualdade, seria a desigualdade flagrante e não igualdade real.” De forma brilhante
continuava ele dizendo que “os apetites humanos conceberam a inversão da norma
universal da criação, pretextando não dar a cada um a medida exata de seu valor, mas
atribuir o mesmo a todos, como se todos fossem equivalentes.”21
Louis Dummont, ao falar da variação de interpretação do significado de um
determinado conceito de valor em relação a diferentes sociedades, rebate a idéia de
direitos humanos universais, prevalecentes em relação a todos os indivíduos,
independente de origem, raça, sexo, religião ou nacionalidade, uma vez que afirma no
sentido de que o conceito de valores - como a liberdade e a igualdade – pode variar de
20 “O homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe.” ROSSEAU, Jean Jacques. O Contrato
Social. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
21 BARBOSA, RUI. Oração aos Moços. Edição anotada por Adriano da Gama Kury. 5 edição. Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997.
12
uma sociedade para outra e, consequentemente, os direitos insculpidos em cada
ordenamento jurídico.
“Assim, valor designa algo diferente do ser, algo que, distinto da verdade científica, que
é universal, varia muito com o meio social e até no seio de uma sociedade dada não só
com as classes sociais, mas também com os diferentes setores de atividade e
experiência.” 22
Para o referido autor, “uma comparação profunda e sólida dos valores só é possível
entre dois sistemas se tomados por inteiro”.23 Isso significa que para uma exata
definição e uma consequente comparação entre valores comuns e inerentes a duas ou
mais sociedades se faz necessária a compreensão e a análise sistemática de todo o
conjunto de valores de cada uma dessas sociedades, e não apenas do valor
individualmente destacado.
Afirma também o autor que é possível a comparação entre os sistemas de valores de
sociedades diferentes a partir de valores individuais e, a partir daí, rever e, até mesmo,
modificar estes valores sociais.
“Vejamos o exemplo mais simples. Suponha-se que a nossa sociedade e a sociedade
observada apresentem, ambas, em seus respectivos sistemas de idéias, os mesmos
elementos A e B. Basta que uma subordine A a B e a outra B a A para que resultem
diferenças consideráveis em todas as concepções. Por outras palavras, a hierarquia
interna da cultura é essencial para a comparação.”24
Em outro livro, Louis Dumont cita o exemplo da diferença do conceito de hierarquia na
sociedade ocidental e na sociedade de castas indiana.25 Afirma que o conjunto está
fundado na coexistência necessária e hierarquizada de dois opostos, deixando claro que
na sociedade indiana a hierarquia é apenas uma ordem de precedência, sem poder nem
22 DUMONT, Louis. O individualismo, uma perspectiva antropológica da idade moderna. Tradução de
Álvaro Cabral. Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1985, p. 241.
23 Ibidem, p. 248.
24 Ibidem, p. 18.
25 Para Louis Dumont, a melhor definição é dada em o Essai de Bouglé, segundo o qual “o sistema de
castas é constituído de grupos hereditários que são ao mesmo tempo distinguidos e relacionados entre si:
a) por uma gradação de estatutos de hierarquia; b) por regras detalhadas que visam assegurar sua
separação; c) por uma divisão do trabalho e pela interdependência que disso resulta”. DUMONT, Louis.
Homo Hierarchicus, o sistema das castas e sua implicações. Tradução de Carlos Alberto da Fonseca. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2 edição, 1997, p.94.
13
autoridade, enquanto que na sociedade ocidental trata-se de uma escala de ordem, de
“extratificação social”, sendo um domínio subordinado e transparente, visível.26
De acordo com seu pensamento, a definição de conceitos como bom e mal ou puro e
impuro são irrelevantes, uma vez que são mutáveis no tempo. O que realmente importa
é a estrutura de oposição que sempre prevalecerá. É o que ele chama de “englobamento
de valores”,27 ou também “englobamento do contrário”28 em que o puro não existe
sem o impuro, o bem sem o mal. Em termos mais práticos, podemos dizer que o
casamento está ligado à tradição de hierarquia mas o que ocorre é uma
complementariedade entre o homem e a mulher independentes, eles se completam. A
conclusão é que a realidade social é uma totalidade de duas metades desiguais, mas
complementares.
5. CONCLUSÃO
Tenho em mente, assim como toda pessoa em sã consciência deveria ter, o conceito de
que a vida é algo bom. Desse modo, o direito fundamental à vida deve ser respeitado por
todos os indivíduos integrantes de qualquer comunidade da sociedade internacional.
Esse direito está inserido na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na maioria
das Constituições dos Estados integrantes da comunidade internacional. Entretanto, não
posso simplesmente afirmar e julgar os acontecimentos e fatos ocorridos em
determinada sociedade com base em minhas próprias concepções e cultura, sem levar
em conta os valores fundamentais daquela sociedade.
Certamente o direito à vida também é garantido a todos os cidadãos do Irã, mas podem
existir outros valores e direitos que venham a se sobrepor a este direito – como a
punição pela infidelidade conjugal ou por tirar a vida de um semelhante. Esses valores e
direitos, inseridos na sociedade do Irã por meio de leis validamente elaboradas,
26 DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus, o sistema das castas e sua implicações. Tradução de Carlos
Alberto da Fonseca. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 2 edição, 1997, p.117.
27 “Onde as idéias superiores contradizem e incluem as inferiores.” DUMONT, Louis. O individualismo,
uma perspectiva antropológica da idade moderna. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Ed. Rocco,
1985, p. 259.
28 Num primeiro nível, homem e mulher são idênticos; num segundo nível, a mulher é o oposto ou o
contrário do homem. O elemento faz parte do conjunto, é-lhe nesse sentido consubstancial ou idêntico, e
ao mesmo tempo dele se distingue ou se opõem a ele. DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus, o sistema
das castas e sua implicações. Tradução de Carlos Alberto da Fonseca. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo. 2 edição, 1997, p.370.
14
certamente foram moldados por influências seculares enraizadas na comunidade
iraniana, como a exercida pela complexa religião islâmica, e devem ser respeitados e
cumpridos sob pena de sua desobediência vir a causar enorme e grave pertubação do
meio social iraniano..
Como foi visto anteriormente, o conceito de bom ou mal, certo ou errado, virtude ou
vício, pode variar profundamente de sociedade para sociedade, ou de um país para
outro. O próprio Estados Unidos da América, símbolo do capitalismo e defensor dos
direitos humanos tem em seu ordenamento jurídico, embora restrita a alguns poucos
Estados, a permissão a pena de morte. Um dos princípios fundamentais do Direito
Internacional é a soberania dos Estados, compreendido aí o poder de legislar de forma a
reger a conduta de seus cidadãos.
Sem querer elaborar qualquer juízo de valor acerca de possíveis arbitrariedades e
crueldades que estejam sendo cometidas pelas autoridades iranianas, afirmo que o
direito à vida deve sempre prevalecer, mas também devem ser levados em conta os
demais valores e direitos inerentes ao Estado e ao povo iraniano. Não pode a sociedade
internacional, contaminada por uma avalanche de informações midiáticas
disponibilizadas de forma talvez irresponsável, impor a sua vontade e o que entende
deva ser feito àquela mulher que fora condenada à pena de morte.
O que está ocorrendo no âmbito da sociedade internacional atual é simplesmente uma
imposição de valores considerados justos e corretos apenas do ponto de vista dos países
ocidentais, em total detrimento e desrespeito a cultura e aos valores aceitos há centenas
de anos pelo Irã, havendo um verdadeiro englobamento, para não se falar em supressão
dos valores e da cultura deste País e da comunidade islâmica, pelos valores
considerados justos e aceitos pela sociedade ocidental, hoje majoritária e com influência
absoluta no contexto político internacional.
4. A posição do Brasil em face da decisão da
OMC: uma decisão realista ou racionalista sob
a perspectiva da Escola das Três Tradições?
4.1. Introdução
A disputa entre Brasil e Estados Unidos na questão do algodão
começou em 2003, quando o Brasil acusou o governo americano de
subsidiar a produção de algodão do seu país, ou seja, de fornecer ajuda
A posição do Brasil em face da decisão da OMC
Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 2, n. 1, p. 101-119, jan./jun. 2011
103
financeira aos seus produtores para que a produção ficasse mais barata.
Com isso, os fazendeiros norte-americanos se tornaram mais competitivos
no mercado internacional porque conseguiam produzir a um custo
menor. O argumento brasileiro foi o de que isso provocou distorções nos
preços do produto no mercado internacional e criou uma vantagem injusta
em detrimento dos produtores de outros países (CATHO, 2010).
Em 2005, a Organização Mundial do Comércio (OMC) decidiu que os
americanos deveriam fazer ajustes administrativos nos programas de ajuda a
seus produtores de algodão, ou suspender os créditos aos exportadores do produto.
Nenhuma das alternativas foi implementada. Em março de 2006 o Brasil
recorreu novamente à OMC argumentando que a decisão não foi cumprida.
O órgão voltou a condenar os americanos em janeiro de 2008, que, no mês seguinte,
apelaram ao Órgão de Solução de Disputas – a instância da OMC que soluciona
esse tipo de queixas –, mas a decisão foi confirmada em junho de 2008.
Ao examinar de forma inédita a questão dos subsídios agrícolas
no âmbito do mecanismo de solução de controvérsias da OMC, o painel
do algodão forneceu elementos valiosos para uma melhor compreensão
e reforço das atuais disciplinas multilaterais do comércio agrícola. A decisão
do painel beneficiará a cotonicultura brasileira e alguns dos países
mais pobres da África produtores de algodão, severamente prejudicados
pelos subsídios em questão, além de impulsionar o fim das distorções no
comércio agrícola mundial (BRASIL, 2004).
Assim, a retaliação foi aprovada pela OMC, em novembro de
2009, como forma de punição aos excessivos gastos de Washington para
subsidiar produtores de algodão, e também por causa de um programa de
garantias para créditos a exportadores. O Brasil foi liberado para adotar
tarifas e quebrar direitos de propriedade intelectual, em um total avaliado
em 829 milhões de dólares. Desde então, ambos os governos iniciaram
negociações a fim de chegarem a um consenso que evitasse a implementação
das medidas sancionatórias pelo Brasil, que foram aprovadas pelo
órgão de solução de controvérsias da OMC.
Posteriormente, o Itamaraty informou que “o acordo feito com
os Estados Unidos vai beneficiar os produtores brasileiros de algodão”.
BILACCHI Jr., G. V.
Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 2, n. 1, p. 101-119, jan./jun. 2011
104
O Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior (Camex) aprovou
o documento que prevê o repasse de US$ 147 milhões por ano a um
fundo para o setor cotonicultor brasileiro, até que os norte-americanos
aprovem nova lei agrícola, em 2012. O Ministro da Agricultura considerou
um grande avanço o acerto com os EUA. Com o acordo, fica suspensa
a sanção autorizada pela OMC, até a aprovação da próxima lei agrícola
americana.
Em 2012, os EUA devem votar uma nova lei agrícola, sendo que,
para isso, já deram início às audiências. Para que o Brasil não exerça o seu direito
de retaliar, a nova lei dos EUA deverá incluir mudanças nos programas
do algodão. As leis agrícolas dos EUA são legislações amplas que cobrem
subsídio às safras, administração de terra, nutrição pública, biocombustíveis,
pesquisa agrícola, exportação e programas de desenvolvimento rural.
Uma vez concluído o processo legislativo que colocará em vigor a nova
lei agrícola norte-americana em 2012, as partes examinarão as modificações
introduzidas naquela legislação e avaliarão a possibilidade de
informar à OMC que foi alcançada uma solução mutuamente satisfatória
para o contencioso (ECONOMIA..., 2010).
Desse modo, podemos afirmar que a preferência do governo
brasileiro pela realização de um acordo e a escolha em não fazer cumprir a
decisão da OMC – que autorizou a majoração do percentual dos impostos
sobre produtos importados dos EUA como forma de retaliação pela concessão
de subsídios agrícolas aos produtores norte-americanos de algodão
em detrimento dos produtores nacionais – foram uma opção diplomática,
ou política, contrária à decisão técnica e jurídica do órgão de solução de
controvérsias da Organização Mundial do Comércio.
Mundo jurídico e mundo político
Nestor Pedro Sagues fala da distinção entre o mundo jurídico e
o mundo político. Afirma ele que determinados fenômenos são políticos e
A posição do Brasil em face da decisão da OMC
Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 2, n. 1, p. 101-119, jan./jun. 2011
105
outros são jurídicos, e que essa diferenciação se explica por razões técnicas
e éticas. Para ele, “quem se apresenta como homem do direito não lhe
corresponde atuar como político. As razões jurídicas deveriam ser, portanto,
impermeáveis às tentações políticas” (SAGUÉS, 1978, p. 1-2,
tradução nossa).
A “tese da distinção” se justifica por três razões principais, quais
sejam: a) a existência de dois objetos distintos, o jurídico e o político; b)
certa incompatibilidade entre tais esferas; e c) a supremacia moral do
mundo jurídico sobre o mundo político, deixando entrever que o primeiro
se preocupa mais que o segundo com a defesa da dignidade do homem.
Em contrapartida, os críticos da visão de mundo jurídico e defensores do
mundo político definem a tarefa jurídica como ofício burocrático, inimigo
do rápido desenvolvimento de uma comunidade que aspira a um regime
mais justo.
Resumindo, a crença da distinção entre o mundo político e o mundo
jurídico parte do pressuposto de que determinados casos são de
natureza política e outros, distintos dos anteriores, são de natureza
jurídica. Consequentemente, o homem poderá atuar juridicamente em
determinado momento e politicamente em outro (SAGUÉS, 1978, p. 3,
tradução nossa).
Para o referido autor, existem quatro posturas fundamentais
acerca do tema. A primeira seria a tese da dualidade dos valores jurídicos e
dos valores políticos, havendo valores específicos para o direito e valores
próprios para a política; a segunda fala da coincidência parcial dos valores
jurídicos e políticos; a terceira seria a tese da coincidência dos valores jurídicos
e políticos, mas com diferenciação em sua operatividade; e a quarta e última
tese trata da unidade clara dos valores jurídicos e políticos, condicionando
sua operatividade às necessidades do homem. Entretanto, as discussões
mais acaloradas restringem-se apenas em torno de duas das posições fundamentais,
a da dualidade e a da unidade, que se contrapõem acerca do
tema mundo jurídico e mundo político.
BILACCHI Jr., G. V.
Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 2, n. 1, p. 101-119, jan./jun. 2011
106
De acordo com o atual estágio de desenvolvimento das relações
internacionais, cada país tem a liberdade de estabelecer suas próprias linhas
ideológicas e de conduta. O Brasil optou, politicamente, pela realização de
um acordo que viesse satisfazer suas pretensões, ainda que parcialmente,
mas que evitasse uma disputa comercial com os EUA e que pudesse se espalhar
para outras áreas do comércio bilateral entre os dois países.
Vista a diferença doutrinária entre mundo político e mundo jurídico,
passaremos a explorar esse último de forma mais aprofundada,
mas agora sob a ótica das relações internacionais.
As relações internacionais
Atualmente a Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece
a existência de 192 Estados soberanos.1 Além dos países-membros, outros
agentes são reconhecidos pela sociedade internacional. Da interação
desses agentes advém um inter-relacionamento no âmbito internacional,
que é o objeto de estudo das Relações Internacionais.
Relações Internacionais é o estudo das interações entre os vários protagonistas
que participam da política internacional, incluindo Estados,
organizações internacionais, organizações não-governamentais, entidades
sub-nacionais, como burocracias e governos locais, e indivíduos.
É o estudo dos comportamentos desses protagonistas quando participam
individualmente ou juntos dos processos políticos internacionais
(MINGST, 2009, p. 2).
O ponto de partida das relações internacionais é a existência de
Estados, que são comunidades políticas independentes que possuem um
governo próprio e afirmam a sua soberania com relação a uma parte da
superfície terrestre e a um segmento da população mundial.
1 Para mais informações,ver: <http://www.onu.org.br/conheca-a-onu/conheca-a-onu/>.
A posição do Brasil em face da decisão da OMC
Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 2, n. 1, p. 101-119, jan./jun. 2011
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A soberania é a característica principal de um Estado para que
ele possa figurar na sociedade internacional e manter relações com outros
agentes dessa sociedade. De um lado temos a soberania interna de um
Estado, que se dá em relação ao seu território e sua população, exercendo
a supremacia sobre todas as demais autoridades dentro daquele território
e em respeito a essa população; de outro, temos a soberania externa, que
consiste não na supremacia, mas na independência do Estado com respeito
às autoridades externas (BULL, 2002).
Assim, para que as relações internacionais se desenvolvam e
atinjam seus objetivos, faz-se necessário o estabelecimento de uma ordem
na sociedade internacional. Afirma Hedley Bull que essa
“ordem que se procura na vida social não é qualquer ordem ou regularidade
nas relações entre indivíduos ou grupos, mas uma estrutura de
conduta que leve a um resultado particular, um arranjo da vida social
que promova determinadas metas ou valores” (BULL, 2002, p. 8).
O autor identifica quatro dessas metas ou valores: a) a preservação
da sociedade internacional; b) a defesa da independência dos Estados
membros; c) a manutenção da paz; e d) a ajuda na garantia das fundações
normativas de toda a vida social, como a limitação da violência e a estabilidade
dos bens (JACKSON; SORENSEN, 2007).
Nesse sentido, podemos dizer que temos dois tipos de ordem: a
ordem mundial e a ordem internacional. Por ordem mundial entendemos
os padrões ou disposições da atividade humana que sustentam os objetivos
elementares ou primários da vida social na humanidade considerada
em conjunto. Por ordem internacional podemos compreender um padrão
de atividade que sustenta os objetivos elementares ou primários da sociedade
dos Estados, ou sociedade internacional (BULL, 2002).
Desse modo, verificamos que a ordem mundial é mais ampla do
que a ordem internacional, porque para descrevê-la precisamos tratar não
só da ordem entre os Estados, mas também da ordem em escala interna
ou local, existente dentro de cada Estado. Também a ordem mundial
BILACCHI Jr., G. V.
Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 2, n. 1, p. 101-119, jan./jun. 2011
108
precede moralmente a ordem internacional, pois é a ordem em toda a humanidade
que precisamos considerar como tendo valor primário, não a
ordem dentro de uma específica sociedade de Estados.
A partir do fim do século XIX e início do século XX, surgiu pela
primeira vez um sistema singular verdadeiramente global. A ordem em
escala global deixou de ser simplesmente o somatório dos vários sistemas
políticos que produziam a ordem em escala local; ele é também o resultado
do que se poderia chamar de sistema político mundial. O primeiro
sistema político mundial assumiu a forma de um sistema de Estados de
âmbito global.
Para uma melhor compreensão, vejamos a definição de sistema
de Estados e sociedade de Estados dada por Hedley Bull (2002, p. 15-19):
sistema de estados (ou sistema internacional) se forma quando dois ou
mais estados têm suficiente contato entre si, com suficiente impacto
nas suas decisões, de tal forma que se conduzam, pelo menos até certo
ponto, como partes de um todo. Existe uma sociedade de estados (ou
sociedade internacional) quando um grupo de Estados, conscientes de
certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade, no sentido
de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto
comum de regras, e participam de instituições comuns.
Assim, podemos concluir que as relações internacionais partem
de um princípio de ordem, que por sua vez regula um sistema de Estados
que abrange as sociedades de Estados. Essa sociedade de Estados, embora
vigore em um regime de “anarquia internacional”, mantém certo grau de
ordem pelos seguintes elementos: a) interesses em comum, com a percepção
de elementos e princípios comuns à ordem de Estados; b) regras, que
estão refletidas no direito internacional e nada mais são do que a manifestação
formal dos interesses comuns dos Estados e servem, portanto,
de orientação para as ações estatais; e c) instituições, que têm o papel de
garantir a eficácia das regras internacionais.
Visando a uma melhor compreensão do complexo campo
teórico das relações internacionais, faremos a seguir uma sucinta
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explanação acerca das principais correntes filosóficas da teoria das relações
internacionais.
As teorias das relações internacionais
As teorias de relações internacionais são bastante diversificadas
e podem ser classificadas de formas diferentes. Para se ter uma ideia,
desde o fim da Primeira Guerra Mundial já houve três grandes debates
acadêmicos dos teóricos das relações internacionais. O primeiro grande
debate foi entre o liberalismo utópico e o realismo; o segundo, entre
as abordagens tradicionais e o behaviorismo; o terceiro, entre o neorrealismo
e o neomarxismo; e agora estamos entrando no quarto debate.
É fundamental nos familiarizarmos com a evolução teórica da disciplina
de relações internacionais para que possamos melhor entender suas direções
atuais e futuras. Eis as principais correntes teóricas:
Liberalismo
O Liberalismo tem raízes históricas em várias tradições filosóficas
que postularam ser a natureza humana basicamente boa. Indivíduos
formam grupos e, mais tarde, Estados. Em geral, os Estados cooperam e
seguem normas e procedimentos internacionais com os quais concordam.
De acordo com a visão liberal, os homens são racionais e, quando aplicam
a razão às relações internacionais, podem estabelecer organizações capazes
de gerar benefícios a todos (JACKSON; SORENSEN, 2007).
Realismo
O Realismo postula que os Estados existem em um sistema internacional
anárquico, em que cada Estado baseia suas políticas em uma
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interpretação de interesses nacional definida em termos de poder. A estrutura
do sistema internacional é determinada pela distribuição de poder
entre os Estados. Assim, as relações internacionais seriam, em um sentido
básico, a luta entre desejos e interesses conflitantes, que envolvem muito
mais a rivalidade do que a cooperação. Para Hans J. Morgenthau, (apud
JACKSON; SORENSEN, 2007, p. 70) “a natureza humana é a base das
relações internacionais, e como os seres humanos buscam seus próprios
interesses e poder, agressões ocorrem com facilidade”.
Essas duas correntes teóricas, também denominadas teorias
clássicas, proporcionaram o primeiro grande debate acadêmico das relações
internacionais, saindo-se o Realismo vencedor por ter prevalecido na
maior parte do século XX.
Teoria radical
Em uma terceira abordagem surge a Teoria radical, segundo
a qual as ações dos indivíduos são determinadas em grande parte pela
classe econômica. Afirma-se que o Estado é um agente do capitalismo
internacional e o sistema internacional é altamente estratificado, sendo
dominado por um sistema capitalista internacional. Dentro dessa teoria
encontramos o pós-modernismo e o construtivismo, ambos generalizados
da investigação de todas as interações sociais.
O pós-modernismo questiona toda noção de Estado pelo fato de
considerá-lo uma ficção engendrada por eruditos e cidadãos. Afirmam os
teóricos dessa corrente doutrinária que os Estados não agem de modo regularizado,
mas são conhecidos apenas pelas histórias que se contam sobre
eles, filtradas pelas perspectivas de quem as conta. Por isso, a tarefa da
análise pós-modernista é desconstruir os conceitos básicos da área e substituí-
los por múltiplas realidades. Já os construtivistas argumentam que
as estruturas fundamentais no sistema de Estados não são materiais, mas
intersubjetivas e sociais. Para eles, o interesse dos Estados não é fixo, mas
maleável e em eterna mutação. Compartilham a crença comum de que o
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discurso modela o comportamento dos protagonistas políticos e, com eles,
definem interesses. Essa teoria vem conquistando importância crescente
no pensamento das relações internacionais no século XXI (MINGST, 2009).
Após o primeiro debate das correntes teóricas das relações internacionais
travado entre a Escola Liberal e a Escola Realista, e o segundo
grande debate travado entre as abordagens metodológicas behaviorista
e tradicional,2 surge o terceiro grande debate, que transfere o foco
das questões militares e políticas para os aspectos econômicos e sociais,
e introduz problemas socioeconômicos de bem-estar, político-militares e
de segurança presentes nos países do Terceiro Mundo.
Economia política internacional
Podemos dizer que o objetivo dos pensadores dessa corrente filosófica
é tratar do debate entre a riqueza e a pobreza internacional, com
foco no desenvolvimento dos países subdesenvolvidos. O debate é travado
por meio das correntes neomarxista, neoliberal e neorrealista.
Os neomarxistas, baseados nos conceitos de exploração e opressão
da classe trabalhadora (proletariado) pela classe capitalista (burguesia),
desenvolvidos por Karl Marx, estendem essa análise para os países
do Terceiro Mundo sob o argumento de que a economia capitalista global,
controlada pelos Estados capitalistas ricos, é utilizada para enfraquecer
os países mais pobres (JACKSON; SORENSEN, 2007).
Os neoliberais, por outro lado, entendem que a prosperidade
humana pode ser alcançada por meio da livre expansão global do capitalismo
além das fronteiras do Estado soberano, e por meio do declínio
da importância desses limites territoriais. Baseiam-se nos ensinamentos
2 A abordagem das relações internacionais pela perspectiva tradicional envolve o acadêmico no
entendimento da história e da prática da diplomacia, da história e do papel do direito internacional,
da teoria política do Estado soberano, e assim por diante. A behaviorista não inclui a moralidade
nem a ética no estudo das relações internacionais, porque estas envolvem valores e não podem ser
estudadas de forma objetiva, isto é, científica (JACKSON; SORENSEN, 2007).
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doutrinários de Adam Smith e outros economistas liberais clássicos que
defendem que os mercados sejam livres, e que a propriedade privada e a
liberdade individual criam a base para o progresso econômico autossustentável
de todos os envolvidos (JACKSON; SORENSEN, 2007).
A visão neorrealista, por sua vez, fundamentada no pensamento
do economista alemão Friedrich List, tem por base a ideia de que a atividade
econômica deve se dedicar à construção de um Estado forte e ao
apoio do interesse nacional. Seguindo essa linha de pensamento, a riqueza
deve ser controlada e administrada pelo Estado. Essa doutrina estadista é
também chamada por muitos de mercantilismo ou nacionalismo econômico.
Entretanto, como vimos, as três perspectivas da Escola da
Economia Política Internacional discordam entre si em termos de conceitos
e valores, e assumem visões fundamentalmente diferentes acerca da
economia política internacional, o que resulta na ausência de uma perspectiva
predominante e que possa ser considerada vencedora do terceiro
grande debates das relações internacionais.
Analisadas, ainda que brevemente, algumas das principais correntes
teóricas das relações internacionais, passemos à análise da Escola
das Três Tradições.
Escola das Três Tradições3
A Escola das Três Tradições constitui uma abordagem de índole
interpretativista e pluralista à Teoria das Relações Internacionais, que se
centra nos conceitos de Hedley Bull e Martin Wight de três tradições de
ação no ambiente internacional. De acordo com as palavras de Samuel
Pires, “constitui uma revigorante visão de mundo para aqueles que não
3 Essa denominação prevaleceu por ser a que mais se ajusta ao contexto dessa teoria das relações
internacionais. “Sociedade Internacional” faz referência direta à teoria racionalista, enquanto que
“Escola Inglesa” foi descartado por serem seus principais teóricos provenientes de outros países
que não a Inglaterra.
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se identificam nos diversos polos dos debates decorrentes da academia
norte-americana, liderados pelo liberalismo e realismo” (PIRES, 2009).
Historicamente, podemos dizer que durante as décadas de 1950
e 1960 o meio acadêmico norte-americano dominou os ensinamentos da
disciplina de relações internacionais. Entretanto, no período da Guerra
Fria surgiu uma Escola Inglesa com enfoque na abordagem tradicional e
baseada no entendimento humano, no julgamento, nas normas e na história,
que negava qualquer distinção severa entre as rígidas visões realista
e liberal das relações internacionais.
A escola da sociedade internacional é uma abordagem histórica e institucional
da política mundial com ênfase nos seres humanos e em seus
valores políticos. [...] Os estudiosos da sociedade internacional, no entanto,
argumentam que a política mundial é uma sociedade anárquica
com instituições, normas e regras distintas utilizadas pelos políticos
para conduzir a política externa (JACKSON; SORENSEN, 2007, p. 195).
A Escola das Três Tradições é uma das abordagens de relações
internacionais clássicas que busca uma posição intermediária entre as
escolas do Realismo e do Liberalismo. Por um lado, seus autores recusam
a visão singular e pessimista dos Estados como organizações
políticas autossuficientes e orgulhosas que se relacionam e lidam uns
com os outros apenas por interesses próprios capazes de gerar a guerra,
sugerida pela Escola Realista. Por outro lado, rejeitam a abordagem
otimista do liberalismo das relações internacionais como uma comunidade
mundial em desenvolvimento que leva ao progresso humano e
à paz perpétua.
Os teóricos da Escola das Três Tradições consideram os Estados
como a base da política mundial, uma vez que as relações internacionais
consistem em políticas, decisões e atividades voltadas ao âmbito global
e realizadas por estadistas que agem em nome dos Estados soberanos.
Desse modo, encontram-se os Estados concebidos como organizações humanas,
ficando que o conceito fundamental da teoria é o de uma Sociedade
de Estados (JACKSON; SORENSEN, 2007).
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Sendo uma corrente doutrinária que se situa em posição intermediária
entre a teoria realista e a teoria liberalista, fazem parte da teoria
da Escola das Três Tradições os conceitos de: a) sistema de Estados
(Realismo); e b) sociedade de Estados (Liberalismo). Vejamos:
sistema de estados (ou sistema internacional) se forma quando dois ou
mais estados têm suficiente contato entre si, com suficiente impacto
nas suas decisões, de tal forma que se conduzam, pelo menos até certo
ponto, como partes de um todo. Existe uma sociedade de estados (ou
sociedade internacional) quando um grupo de Estados, consciente de
certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade, no sentido
de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto
comum de regras, e participam de instituições comuns (BULL,
2002, p. 15-19).
Uma vez que na política internacional não há uma autoridade
hierárquica, não há um governo mundial acima dos Estados soberanos.
No entanto, ainda existem interesses, regras, instituições e organizações
comuns criados pelos Estados para ajudar a constituir a interação entre
eles. Hedley Bull define a condição internacional como uma sociedade
anárquica:
sustenta-se em geral que a existência da sociedade internacional é desmentida
em razão da anarquia, ou seja, da ausência de um governo
ou de regras. É óbvio que, ao contrário dos indivíduos que vivem no
seu interior, os estados soberanos não estão sujeitos a um governo
comum, e que neste sentido existe uma anarquia internacional (BULL,
2002, p. 57).
Martin Wight nos ensina que as ideias dos principais teóricos
das relações internacionais se inserem em três categorias básicas: o
Realismo, o Racionalismo e o Revolucionismo – também denominadas de
“três erres” (SARFATI, 2005). Segundo ele, somente a união dos conceitos
dessas três “vozes” da Escola Inglesa é que poderia resultar em uma
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correta avaliação das relações internacionais. Vejamos a seguir a definição
de cada um desses conceitos:
O Realismo é o conceito no qual predomina a “anarquia internacional”
e em que a rivalidade e o conflito entre os Estados são “inerentes”
às suas relações. Nesse sentido, o elemento da anarquia, da política de poder
e do conflito armado é enfatizado. Tal perspectiva se concentra no real
(o que é) em detrimento do ideal (o que deveria ser). Portanto, rejeita um
pensamento ilusório e promove a aceitação sincera do lado desagradável
da vida. Quando levado ao extremo, o Realismo é a negação da possibilidade
de uma sociedade internacional, sendo que o que existe é um Estado
de natureza hobbesiano. A única sociedade política e comunidade moral
de fato é o Estado – logo, não há obrigações internacionais além ou entre
Estados. Os principais teóricos dessa teoria foram Nicolau Maquiavel e
Thomas Hobbes.
O Racionalismo acredita que os seres humanos são racionais e
podem reconhecer o certo e aprender com seus erros e com os dos outros.
Para os seus teóricos, as pessoas são capazes de viver de modo lógico e em
conjunto, mesmo quando não há um governo comum, como na condição
anárquica descrita pelos realistas. Levado ao extremo, o mundo dos racionalistas
seria um mundo perfeito de respeito mútuo, concordância e do
estado de direito entre os Estados. Dessa forma, essa perspectiva define
um “caminho intermediário” da política internacional, situando-se entre
os realistas pessimistas e os revolucionistas. Seu principal defensor foi
Grotius (JACKSON; SORENSEN, 2007).
Os seguidores dessa teoria veem o mundo como uma sociedade
internacional, na qual ocorre a institucionalização de interesses e identidades
partilhadas entre Estados. O Racionalismo se preocupa essencialmente
com a criação e manutenção de normas partilhadas, regras e instituições,
por meio de uma visão do direito internacional baseada na grociana combinação
entre direito natural e direito positivo (PIRES, 2009).
Por sua vez, os defensores do Revolucionismo são acadêmicos
que se identificam com a humanidade e acreditam na “unidade moral” da
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sociedade além do Estado. A sua teoria internacional tem um caráter progressivo,
e até mesmo missionário, por pretender mudar o mundo para melhor.
Para eles, a mudança social revolucionária é o objetivo – vislumbram
o surgimento de um mundo ideal. Diferentemente dos realistas, os revolucionistas
são otimistas com relação à natureza e acreditam na perfeição humana.
Para eles, o propósito definitivo da história internacional é permitir
que os homens alcancem a realização e a liberdade. Levado ao extremo, o
Revolucionismo seria uma reivindicação de que a única sociedade real na
Terra é uma sociedade mundial composta de todos os seres humanos. Seu
principal teórico foi Immanuel Kant (JACKSON; SORENSEN, 2007).
Wight fala também da distinção entre o realismo moderado
e o realismo apropriado e extremado. Afirma que os realistas extremos
negam a existência de uma sociedade internacional, pois consideram as
relações internacionais entre Estados soberanos uma condição moralmente
neutra e, dessa forma, instrumental. Para eles, a sociedade é possível
dentro dos Estados, mas não entre eles, uma vez que nenhum deles tem
autoridade suficiente para controlar qualquer outro Estado soberano, e
nenhum Estado soberano tem a obrigação de obedecer a outro Estado soberano.
Já os realistas moderados estão mais próximos dos racionalistas
por reconhecerem o direito internacional, mas ressaltam que tais normas
são elaboradas com base nos interesses e nas responsabilidades das grandes
potências (JACKSON; SORENSEN, 2007).
Entretanto, Wight não faz nenhuma distinção importante dentro
do Racionalismo. Limita-se a reconhecer a importância norteadora do
interesse nacional na conduta da política externa, ressaltando a legitimidade
do interesse nacional de outros países e não simplesmente do seu
próprio Estado, incluindo rivais e até inimigos.
Considerações finais
Transportando essas teorias para o tema de nosso trabalho,
podemos dizer que não existem dúvidas acerca da importância histórica
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da decisão do órgão de solução de controvérsias da OMC em permitir ao
Brasil exercer o direito de retaliar os produtos importados dos Estados
Unidos, seja por meio de elevação das alíquotas do imposto de importação,
seja por meio da quebra de patentes de produtos industrializados,
ou qualquer outra forma de compensação financeira, em decorrência da
declaração de ilegalidade dos subsídios concedidos aos produtores norte-
-americanos de algodão. Certamente essa decisão abrirá portas para futuras
decisões que visem ao cumprimento dos tratados e das regras comerciais
regidas pelo direito internacional.
A decisão do governo brasileiro de não exercer o direito de retaliação
e celebrar um acordo com o governo americano é uma decisão eminentemente
política, que foi considerada mais benéfica aos produtores
brasileiros e às relações comerciais que envolvem Brasil e Estados Unidos.
Conforme determina a Constituição da República Federativa do Brasil, por
força do artigo 84, incisos VII e VIII, é competência privativa do presidente
da República manter relações com Estados estrangeiros e celebrar tratados,
convenções e atos internacionais (BRASIL, 1988). Também compete ao
chefe do Poder Executivo ditar os rumos da economia nacional.
Entretanto, do ponto de vista teórico do direito internacional,
concluímos que a concessão de subsídios financeiros aos produtos norte-
-americanos de algodão por parte de seu governo caracteriza o Realismo
descrito pela Escola das Três Tradições, em que prevalece o egoísmo e a
rivalidade entre os Estados soberanos, visando cada um a obter maiores
vantagens para si, ainda que em detrimento dos demais países da sociedade
internacional.
Por outro lado, a decisão do governo brasileiro em realizar um
acordo com o governo americano almejando uma solução, ainda que
provisória e dependente de condição futura – que será a aprovação pelo
Congresso americano de reforma da lei de concessão de subsídios aos produtores
de algodão –, caracteriza o Racionalismo descrito pela Escola das
Três Tradições. O Brasil parece buscar uma solução “amigável” e racional
para que o consenso seja atingido e não haja a instauração de um novo
processo contencioso no âmbito das relações comerciais dos dois países.
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Gostaríamos muito de acreditar que a real intenção do governo
brasileiro fosse a obtenção de um acordo harmonioso entre os Estados litigantes,
nos moldes da teoria racionalista. Todavia, sem querer demonstrar
qualquer pessimismo extremado, o que nos parece é que o Brasil optou
pela teoria realista ao não exercer seu direito de retaliação aos produtos
americanos por uma causa óbvia – evitar o uso da força da economia americana
em detrimento da economia brasileira no mercado internacional,
ou seja, o boicote internacional dos produtos brasileiros por imposição do
governo dos Estados Unidos da América.
5. Não se aplica a teoria do adimplemento substancial para a
alienação fiduciária regida pelo DL 911/69:
5.1. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
Em um contrato, se uma parte descumpre a sua obrigação, a parte credora terá, em regra, duas opções:
1) poderá exigir o cumprimento da prestação que não foi adimplida; ou
2) pedir a resolução (“desfazimento”) do contrato.
Além disso, tanto em um caso como no outro, ela poderá também pedir o pagamento de eventuais perdas e danos
que comprove ter sofrido. Isso está previsto no art. 475 do Código Civil:
Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o
cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.
A teoria do adimplemento substancial tem por objetivo mitigar o que foi explicado acima. Segundo essa teoria, se a
parte devedora cumpriu quase tudo que estava previsto no contrato (ex: eram 48 prestações, e ela pagou 46),
então, neste caso, a parte credora não terá direito de pedir a resolução do contrato porque, como faltou muito
pouco, o desfazimento do pacto seria uma medida exagerada, desproporcional, injusta e violaria a boa-fé objetiva.
Desse modo, havendo adimplemento substancial (adimplemento de grande parte do contrato), o credor teria
apenas uma opção: exigir do devedor o cumprimento da prestação (das prestações) que ficou (ficaram)
inadimplida(s) e pleitear eventual indenização pelos prejuízos que sofreu.
Veja o clássico conceito de Clóvis do Couto e Silva:
Adimplemento substancial “constitui um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a
conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o pedido de indenização e/ou
adimplemento, de vez que a primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa-fé (objetiva)" (O Princípio da Boa-Fé
no Direito Brasileiro e Português in Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português. São Paulo: RT, 1980, p. 56).
A origem desta teoria remonta o Direito Inglês do séc. XVIII, tendo lá recebido o nome de "substancial
performance".
A teoria do adimplemento substancial é acolhida pelo STJ?
1/6
SIM. Existem julgados adotando expressamente a teoria. Vale ressaltar, no entanto, que seu uso não pode ser
banalizado a ponto de inverter a lógica jurídica de extinção das obrigações. O “normal” que as partes esperam
legitimamente é que os contratos sejam cumpridos de forma integral e regular.
Diante disso, a fim de que haja critérios, o STJ afirma que são necessários três requisitos para a aplicação da
teoria:
a) a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes;
b) o pagamento faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio;
c) deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia
devida pelos meios ordinários.
STJ. 4ª Turma. REsp 1581505/SC, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 18/08/2016.
Feitas estas considerações, imagine a seguinte situação hipotética:
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
Conceito
“A alienação fiduciária em garantia é um contrato instrumental em que uma das partes, em confiança, aliena a outra
a propriedade de um determinado bem, ficando esta parte (uma instituição financeira, em regra) obrigada a
devolver àquela o bem que lhe foi alienado quando verificada a ocorrência de determinado fato.” (RAMOS, André
Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial Esquematizado. São Paulo: Método, 2012, p. 565).
Regramento
O Código Civil de 2002 trata de forma genérica sobre a propriedade fiduciária em seus arts. 1.361 a 1.368-B.
Existem, no entanto, leis específicas que também regem o tema:
• alienação fiduciária envolvendo bens imóveis: Lei nº 9.514/97;
• alienação fiduciária de bens móveis no âmbito do mercado financeiro e de capitais: Lei nº 4.728/65 e Decreto-Lei
nº 911/69. É o caso, por exemplo, de um automóvel comprado por meio de financiamento bancário com garantia de
alienação fiduciária.
Nas hipóteses em que houver legislação específica, as regras do CC-2002 aplicam-se apenas de forma
subsidiária:
Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina
específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for
incompatível com a legislação especial.
Resumindo:
2/6
Alienação fiduciária de
bens MÓVEIS fungíveis e infungíveis
quando o credor fiduciário for instituição
financeira
Alienação fiduciária de
bens MÓVEIS infungíveis quando o credor
fiduciário for pessoa natural ou jurídica (sem
ser banco)
Alienação
fiduciária
de
bens
IMÓVEIS
Lei nº 4.728/65
Decreto-Lei nº 911/69
Código Civil de 2002
(arts. 1.361 a 1.368-A)
Lei nº
9.514/97
INAPLICABILIDADE DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL À ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA REGIDA
PELO DL 911/69
A espécie mais comum de alienação fiduciária é a de automóveis, que é regida pelo Decreto-Lei nº 911/69.
Ex: Antônio quer comprar um carro de R$ 30 mil, mas somente possui R$ 10 mil. Antônio procura o Banco “X”, que
celebra com ele contrato de financiamento com garantia de alienação fiduciária .
Assim, o Banco “X” empresta R$ 20 mil a Antônio, que compra o veículo. Como garantia do pagamento do
empréstimo, a propriedade resolúvel do carro ficará com o Banco “X” e a posse direta com Antônio.
Em outras palavras, Antônio ficará andando com o carro, mas, no documento, a propriedade do automóvel é do
Banco “X” (constará: “alienado fiduciariamente ao Banco X”). Diz-se que o banco tem a propriedade resolúvel
porque, uma vez pago o empréstimo, a propriedade do carro pelo banco “resolve-se” (acaba) e o automóvel passa
a pertencer a Antônio.
Antônio financiou o veículo em 48 prestações. Após pagar 44 parcelas, ele ficou desempregado e não conseguiu
arcar com as 4 últimas prestações.
O que acontece em caso de inadimplemento do mutuário (em nosso exemplo, Antônio)?
Havendo mora por parte do mutuário, deverá ser adotado o procedimento previsto no DL 911/69:
Notificação do devedor
O credor deverá fazer a notificação extrajudicial do devedor de que este se encontra em débito, comprovando,
assim, a mora. Essa notificação é indispensável para que o credor possa ajuizar ação de busca e apreensão.
Confira:
Súmula 72-STJ: A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente.
Como é feita a notificação do devedor? Essa notificação precisa ser realizada por intermédio do Cartório
de Títulos e Documentos?
NÃO. Essa notificação é feita por meio de carta registrada com aviso de recebimento. Logo, não precisa ser
realizada por intermédio do Cartório de RTD.
3/6
O aviso de recebimento da carta (AR) precisa ser assinado pelo próprio devedor?
NÃO. Não se exige que a assinatura constante do aviso de recebimento seja a do próprio destinatário (§ 2º do art.
2º do DL 911/69).
Para a constituição em mora por meio de notificação extrajudicial, é suficiente que seja entregue no endereço do
devedor, ainda que não pessoalmente.
Ajuizamento da ação de busca e apreensão
Após comprovar a mora, o mutuante (Banco “X”) poderá ingressar com uma ação de busca e apreensão
requerendo que lhe seja entregue o bem (art. 3º do DL 911/69). Essa busca e apreensão prevista no DL 911/69 é
uma ação especial autônoma e independente de qualquer procedimento posterior.
Concessão da liminar
O juiz concederá a busca e apreensão de forma liminar (sem ouvir o devedor), desde que comprovada a mora ou o
inadimplemento do devedor (art. 3º do DL 911/69).
Possibilidade de pagamento integral da dívida
No prazo de 5 dias após o cumprimento da liminar (apreensão do bem), o devedor fiduciante poderá pagar a
integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na
qual o bem lhe será restituído livre do ônus (§ 2º do art. 3º do DL 911/69). Veja o dispositivo legal:
Art. 3º (...)
§ 1º Cinco dias após executada a liminar mencionada no caput, consolidar-se-ão a propriedade e a posse plena e
exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário, cabendo às repartições competentes, quando for o caso,
expedir novo certificado de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre do ônus
da propriedade fiduciária. (Redação dada pela Lei 10.931/2004)
§ 2º No prazo do § 1º, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores
apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus. (Redação
dada pela Lei 10.931/2004)
O que se entende por “integralidade da dívida pendente”?
Todo o débito.
Segundo decidiu o STJ, a Lei nº 10.931/2004, que alterou o DL 911/69, não mais faculta ao devedor a possibilidade
de purgação de mora, ou seja, não mais permite que ele pague somente as prestações vencidas.
Para que o devedor fiduciante consiga ter o bem de volta, ele terá que pagar a integralidade da dívida, ou seja,
tanto as parcelas vencidas quanto as vincendas (mais os encargos), no prazo de 5 dias após a execução da
4/6
liminar.
Em nosso exemplo, Antônio terá que pagar, em 5 dias, as 4 parcelas restantes.
O devedor purga a mora quando ele oferece ao credor as prestações que estão vencidas e mais o valor dos
prejuízos que este sofreu (art. 401, I, do CC). Nesse caso, purgando a mora, o devedor consegue evitar as
consequências do inadimplemento. Ocorre que na alienação fiduciária em garantia, a Lei n.° 10.931/2004 passou a
não mais permitir a purgação da mora.
Vale ressaltar que o tema acima foi decidido em sede de recurso repetitivo, tendo o STJ firmado a seguinte
conclusão, que será aplicada em todos os processos semelhantes:
Nos contratos firmados na vigência da Lei 10.931/2004, compete ao devedor, no prazo de 5 (cinco) dias
após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida - entendida esta
como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da
propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária.
STJ. 2ª Seção. REsp 1.418.593-MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/5/2014 (recurso repetitivo) (Info
540).
Feita esta breve revisão, voltemos ao nosso exemplo:
O Banco enviou notificação extrajudicial para Antônio informando que ele se encontrava em débito (Súmula 72-
STJ), mas este não fez a purgação da mora.
Diante disso, a instituição financeira ingressou com ação de busca e apreensão requerendo a entrega do bem,
conforme autoriza o art. 3º do DL 911/69:
Art. 3º O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2º
do art. 2º, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado
fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário.
O juiz concedeu a liminar e o automóvel saiu da posse de Antônio e foi entregue ao Banco.
Resposta do devedor
O devedor fiduciante apresentou, então, resposta (uma espécie de contestação) prevista no § 3º do art. 3º do DL
911/69.
Nesta defesa apresentada pelo devedor, ele pediu a aplicação da teoria do adimplemento substancial, afirmando
que cumpriu quase todas as prestações (cumpriu 91,66% do contrato). Logo, a determinação de tomar o veículo,
resolvendo o contrato, seria uma medida desproporcional. Argumentou que o banco deveria ter ingressado com
ação cobrando as quatro últimas parcelas que não foram pagas.
A tese do devedor foi aceita pelo STJ? É possível a aplicação da teoria do adimplemento substancial para a
alienação fiduciária regida pelo DL 911/69?
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NÃO.
Não se aplica a teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária em garantia
regidos pelo Decreto-Lei 911/69.
STJ. 2ª Seção. REsp 1.622.555-MG, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado
em 22/2/2017 (Info 599).
Conforme vimos acima, devidamente comprovada a mora ou o inadimplemento, o DL 911/69 autoriza que o credor
fiduciário possa se valer da ação de busca e apreensão, sendo irrelevante examinar quantas parcelas já foram
pagas ou estão em aberto.
Além disso, o art. 3º, § 2º do DL 911/69 prevê que o bem somente poderá ser restituído ao devedor se ele pagar, no
prazo de 5 dias, a integralidade da dívida pendente.
Dessa forma, a lei foi muito clara ao exigir a quitação integral do débito como condição imprescindível para que o
bem alienado fiduciariamente seja emancipado. Ou seja, nos termos da lei, para que o bem possa ser restituído ao
devedor livre de ônus, é necessário que ele quite integralmente a dívida pendente.
Assim, mostra-se incongruente impedir a utilização da ação de busca e apreensão pelo simples fato de faltarem
poucas prestações a serem pagas, considerando que a lei de regência do instituto expressamente exigiu o
pagamento integral da dívida pendente.
Incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas
Vale mencionar, ainda, que a aplicação da teoria do adimplemento substancial para obstar a utilização da ação de
busca e apreensão representaria um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas contratuais, considerando
que o devedor saberia que não perderia o bem e que o credor teria que se contentar em buscar o crédito faltante
por outras vias judiciais menos eficazes.
Juros mais elevados
Se fosse aplicada a teoria do adimplemento substancial para os contratos de alienação fiduciária, haveria um
enfraquecimento da garantia prevista neste instituto fazendo com que as instituições financeiras começassem a
praticar juros mais elevados a fim de compensar esses riscos. Isso seria prejudicial para a economia e para os
consumidores em geral.
Dessa forma, a propriedade fiduciária, concebida pelo legislador justamente para conferir segurança jurídica às
concessões de crédito, essencial ao desenvolvimento da economia nacional, ficaria comprometida pela aplicação
deturpada da teoria do adimplemento substancial.
6. Contratos: Fazem parte das obrigações pois as geram. São NJ's privados que envolvem bens e patrimônios das pessoas, por meio dos quais dois ou mais sujeitos se vinculam para regular interesses relativos a objetos economicamente apreciáveis, buscando a satisfação de suas necessidades dos quais se criam, modificam, resguardam, conservam e se extinguem direitos e deveres (ex: Convenção, pacto, acordo, ajuste, termo, instrumento, entre outros). Não se usa o termo "contrato" quando se fala em NJ (ex: O "contrato de compra e venda" pode apenas ser chamado de "compra e venda").
6.1. Contratos com menores:
6.1.1. Menores de 16 devem ser representados;
6.1.2. Entre 16 e 18 devem ser assistidos.
6.2.3. A capacidade de fatp é um requisito de validade (art. 104 CC);
7. Contratos com PJ: PJ de direito privado.
8. Propriedades dos contratos:
8.1. São instrumentos dos NJ's;
8.2. Bilaterais e sinalagmáticos (Podem ser unilaterais quanto aos efeitos);
8.3. Deve haver vontade;
8.4. Deve ser válido: Agente capaz, objeto lícito, possível e determinado ou determinável);
8.5. Deve ter forma prescrita ou não, defesa em lei;
9. Forma dos contratos: Os contratos, em regra, não têm forma prescrita em lei, com algumas exceções como o de doação (só não deve ser proibida por lei) -art. 107, CC-. O contrato escrito é uma mera formalidade para que o poder público possa cobrar impostos.
10. Término do contrato (Adimplemento): Quando as partes cumprem suas obrigações.
10.1. Mora: Inadimplemento que pode ser das duas partes.
11. Perdas e danos: Quando não há mais possibilidade de se cumprir.
12. Lucros cessantes: Prejuízos causados pela interrupção de atividades de empresa ou liberal no qual o objeto é o lucro (ex: taxi).
13. Contratos de adesão: Regido somente pelo fornecedor, sem que o consumo possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
14. Objeto do contrato: As partes assumem obrigações pessoais e de valor econômico com objeto lícito, possível, determinado ou determinável. O objeto do contrato é a transferência da propriedade do bem e o da obrigação é o próprio bem.
14.1. Herança: Não pode haver herança de pessoa viva, apenas após a morte.
14.2. Liberdade: A liberdade não pode ser negociada pois é bem indisponível.
15. Tradição: Requisito para a conclusão do contrato.
16. Princípios contratuais clássicos:
16.1. Autonomia privada: Derivada da autonomia da vontade. Deve-se haver liberdade para celebrar NJ's nas relações privadas.
16.2. Liberdade contratual: Refere-se ao conteúdo do contrato. Não é absoluta, havendo necessidade, o que foi acordado no caso concreto pode ser revisto. Liberdade no negócio que está sendo feito. Tudo o que a lei não proíbe.
16.3. Liberdade de contratar: Escolher "se" e "com quem" se vai contratar, sendo o contrato não obrigatório.
16.4. Consensualismo: Acordo livremente manifestado.
16.5. Obrigatoriedade: Imutabilidade contratual.
16.5.1. Não cumprimento: Ocorrerá inadimplemento contratual com a penalidades cabíveis.
16.5.2. Segurança jurídica (Lei 12072/15): Margem consignável de empréstimo, determinando o limite de sua renda para empréstimos (até 35%).
17. Dirigismo contratual: Intervenção do Estado nos contratos com base na função social e Boa-fé. O direito deve respeitar a liberdade contratual e de contratar das partes, mas deve também reservar o espaço de atuação com intuito de intervir nas relações contratuais sempre que for necessário, afim de garantir a dignidade das partes contratantes e a função social dos contratos.
17.1. Pagamentos abusivos: Controle de cláusulas abusivas como castigos corporais;
17.2. Liberdade: Via de regra, não poderá ser restringida por dívidas.
17.3. Direito civil constitucional: Direito civil à luz dos direitos fundamentais.
17.4. Eficácia:
17.4.1. Vertical: Estado X Cidadão;
17.4.2. Transversal: Empregado X empregador;
17.4.3. Horizontal: Cidadão X Cidadão;
18. Normas particulares X Direitos fundamentais: As NP não podem sobrepor os DF.
18.1. Direitos indisponíveis: As partes não podem abrir mão dos direitos fundamentais.
18.2. Estatuto da empresa: Estabelece norma de origem privada.
19. Direitos fundamentais nas relações entre particulares:
19.1. Autonomia da vontade: É um direito do cidadão mas não pode desrespeitar outras garantias;
19.2. Liberalismo absoluto: Caiu em desuso, dando lugar ao dirigismo contratual.
19.3. Função social dos contratos: Evidencia o dirigismo junto com a boa-fé.
20. Pacta sunt servanda e autonomia privada?: Não são princípios absolutos pois são limitados pelo dirigismo contratual.
21. Intervenção estatal: Se o judiciário identifica a violação de algum direito fundamental no contrato.
22. Homologação: O juiz confere se o que está no contrato foi realmente fruto da vontade das partes.
23. Características do dirigismo contratual:
23.1. Imposição de contratação: Em nome da função social dos contratos, as cláusulas podem ser revistas, pelo bem da dignidade da pessoa humana (ex: Rescisão contratual após anos de contribuição).
23.2. Proibir cláusulas: Toda alteração contratual deve ser fundamentada, sendo proibidas as cláusulas abusivas (ex: Aumento do valor das mensalidades).
23.3. Equidade (Art. 413 CC): O juiz pode intervir para reduzir a cláusula penal (ex: Empreitada).
24. Revisão contratual: Requisitos.
24.1. Contrato comutativo: Prestações certas e determinadas.
24.2. Contrato continuado: A interrupção compromete.
24.3. Alteração das circunstancias da contratação.
24.4. Desequilíbrio das prestações.
24.5. Onerosidade excessiva.
25. Fundamentos da revisão contratual:
25.1. Teoria da imprevisão (art. 317): Quando vier motivo imprevisível superveniente.
25.2. Teoria da onerosidade excessiva (art. 478): A onerosidade excessiva, devido a fato alheio a vontade da parte, gera revisão contratual.
26. Boa-fé: Princípio contratual expresso no CC. A segurança das relações jurídicas depende, em grande parte, da probidade e boa-fé, isto é, lealdade, confiança recíproca, justiça, equivalência das prestações, coerência e clarividência dos direitos e deveres.
26.1. Inobservância (art. 113 e 422): Constitui ato ilícito. Deve ser observada a boa-fé, mesmo que não seja citada em contrato.
26.2. Ato ilícito por abuso de direito (Art. 187): Mesmo estado no exercício de seus direitos, comete ato ilícito quem excede este direito (ex: Credor que cobra de forma abusiva).
26.3. Espécies de boa-fé:
26.3.1. Objetiva: Cláusula geral, deve estar em todos os contratos e ser observada por todos os contratantes. Expressa dever de conduta.
26.3.2. Subjetiva: Inerente ao sujeito contratante. A falta desta pode configurar vício redibitório por omitir defeitos inerentes a coisa alienada.
26.3.2.1. Dolo: Pode causar anulação do NJ se a reclamação for feita em até 4 anos depois da celebração (prazo decadencial e perda do direito de anular).
27. Deveres anexos a boa-fé: Condutas das partes que levam a boa-fé.
27.1. Cuidado;
27.2. Respeito;
27.3. Informação;
27.4. Confiança;
27.5. Lealdade;
27.6. Probidade;
27.7. Colaboração;
27.8. Cooperação;
27.9. Razoabilidade;
28. Fases contratuais: Deve existir boa-fé em todas;
28.1. Pré-contratual (tratativas): Tem-se ofertas e negociações sem contrato.
28.2. Pós-contratual: Mesmo depois da conclusão do NJ ainda continua havendo vínculo (ex: Garantia).
29. Caso cica: Em nome da tradição e do costume existentes na fase pré-contratual, a empresa foi obrigada a indenizar os fornecedores.
30. Sum. 548, STJ: Incumbe ao credor a exclusão do registro da dívida em nome do devedor. A falta da boa-fé gera danos morais independente de prejuízo comprovado.
31. Sub princípios: Desdobramentos do princípio da boa-fé.
31.1. Proibição do venire contra fato próprio: Determinada parte contratante não pode exceder um direito contrariando seu comportamento anterior, devendo ser mantida a confiança e o dever de lealdade, decorrentes da boa-fé objetiva pois ninguém pode se beneficiar da própria torpeza (ex: Contrato com incapaz que omite dolosamente sua incapacidade deve ser cumprido).
31.2. Supressio (suprimir): Não se admite que, após um longo período, venha a parte contratante pleitear o direito que deixou de exercer, configurando renúncia tácita (implícita), perdendo-se o direito. Uma cláusula contratual pode perder a eficácia se for descumprida por muito tempo (ex: Ir a casa do devedor cobrar a dívida por um ano). -Art. 330, CC-
31.3. Surrectio: Cria direitos baseando-se na perda de outros pela prática reiterada. O consentimento de uma das partes de forma diversa da estipulada no contrato cria alterações substanciais no contrato, inviabilizando determinadas cláusulas.
31.4. Vedação do "Tu quoque" (abuso de confiança): Abuso de confiança legítima acordada entre as partes.
31.5. Teoria da aparência: Quando seguido o protocolo do NJ, as partes participantes do acordo têm compromisso uma com a outra, mesmo que uma delas seja representada por alguém que aparentemente não seja parte (ex: Intimação feita por telefone fornecido pela empresa).
31.6. Dever de mitigar as perdas: O credor tem dever de contribuir contra o próprio prejuízo. Não se pode, depois de muito tempo negociando em contrato, cobrar da outra parte.
32. Princípios clássicos: Representam o direito privado.
32.1. Autonomia da vontade das partes;
32.2. Consenso;
32.3. Obrigatoriedade: Pacta sunt servanda;
32.4. Relatividade dos contratos: Os contratos obrigam os contratantes;
32.5. Dirigismo contratual: Representam direitos públicos;
32.6. Função social dos contratos (art. 421): A autonomia da vontade privada existe, mas tem limites assim como a boa-fé. É a finalidade coletiva dos contratos.
32.7. Propriedade: Maior símbolo do direito privado, que se dobra a finalidade coletiva pela função social.
33. Eficácia da função social:
33.1. Interna: Função social dentro do contrato entre os contratantes, que se dá de algumas formas.
33.1.1. Proteção dos vulneráveis (art. 423): Relações de trabalho ou contratos de adesão, por exemplo. O contrato de adesão deve ser favorável ao aderente.
33.1.2. Nula a cláusula de renúncia antecipada: O negociador deve ter a oportunidade de discutir a cláusula antes, também não se pode contratar uma cláusula envolvendo direito indisponível (ex: Cláusula negociando liberdade).
33.1.3. Proteção da dignidade: Não se pode dispor da própria dignidade ou integridade física em contrato, com exceção da prostituição (STJ-302).
33.1.4. Vedação da onerosidade excessiva: Negócios excessivamente onerosos podem ser anulados quando há lesão por inexperiência de uma das partes. Se uma das partes fechou o contrato com má-fé comprovada, o NJ pode ser anulado.
33.1.5. Princípio da conservação dos contratos: Reequilíbrio contratual. A conservação externa vincula quem não faz parte do contrato.
33.1.6. Confiança (art. 608): Tutela externa do crédito. Embora o contrato tenha sido feito entre duas partes, o terceiro que tem interesse deve observar e respeitar o contrato (ex: Aliciar pessoas com contrato escrito).
34. Formação dos contratos:
34.1. Manifestação da vontade: Baseada no princípio da legalidade, os cidadãos podem fazer tudo o que a lei não proíbe.
34.2. Formas de manifestação da vontade:
34.2.1. Expressa: Escreta, verbal, gestual, entre outras.
34.2.2. Tácita: Não necessita da manifestação da vontade das duas partes. A parte não assume encargos e a manifestação da vontade é presumida (ex: Doação, art. 539).
34.2.2.1. Contrato unilateral gratuito: Só há prestação para uma das partes. Nesse caso, o silêncio importa em anuência e só uma das partes ganha.
35. Silêncio:
35.1. Anuência do silêncio: Em contratos gratuitos ou quando o uso ou circunstancia do NJ autorizar (art. 111).
35.2. Cláusulas especificando o silêncio: Presume-se que até que haja manifestação em contrário, a resposta é positiva.
35.3. Locação (art. 574 CC): Ao fim do contrato, se não houver relocação nem protesto do locador, presume-se renovação do contrato.
36. Etapas contratuais:
36.1. Negociações preliminares: Detalhes do negócio e do produto, não há responsabilidade contratual, muito menos contrato.
36.2. Proposta: Manifestação pública da vontade (ex: Orçamento): O proponente ja tem responsabilidade contratual (art. 427). Manifestação da vontade deste para firmar uma obrigação de dar, fazer ou não fazer. Pode ocorrer indenização se houver frustração de legítima expectativa (ex: Caso Cica).
36.2.2. Proponente (Autor/Policitante): Quem manifesta a proposta. Já está vinculado a ela.
36.2.3. Destinatário (Oblato): Quem recebe e aceita a proposta. A proposta não o vincula pois este não manifestou vontade.
36.2.4. Validade da proposta: O proponente, a não ser que faça ressalvas, está ligado a proposta (ex: Imagens meramente ilustrativas) -Art. 427-.
36.2.5. Oferta pública: Proposta destinada ao público em geral (ex: Propaganda). Não há destinatário específico. A oferta pública equivale a proposta quando compreende os requisitos essenciais do contrato. Um produto anunciado em um folheto, por exemplo, deve ser vendido pelo preço anunciado, a não ser que a oferta tenha termo de validade, neste caso a oferta poderá ser revogada pela mesma via de divulgação.
37. Requisitos essenciais da compra e venda: Objeto e preço.
38. Aceitação da proposta: Marca o início do contrato.
38.1. Contra-proposta (art. 431): Qualquer modificação que gere nova proposta.
38.1.1. Ausentes: É necessário um prazo até que chegue a resposta com a aceitação do oblato.
38.1.2. Presentes: Se não houver aceitação imediata, importa em recusa (art. 428, I)
38.1.3. Prazo: Se for estipulado um prazo para resposta, este deve ser aguardado, não podendo ser feito nenhum outro negócio com terceiro.
39. Celebração do NJ: Quando as vontades dos dois polos se encontram.
40. Tipos de proposta:
40.1. Entre presentes: Respondida instantaneamente, a presença não precisa ser necessariamente física (ex: Telefone).
40.1.1. Proposta sem prazo específico: Resposta imediata;
40.1.2. Prazo para proposta de consumo: 10 dias;
40.2. Entre ausentes: A proposta deve ter um prazo razoável para resposta.
40.2.1. Validade da proposta: A resposta deve ter o mesmo prazo de espera que a proposta, porém ao receber a proposta, o oblato deve comunicar. Se houver caso fortuito que impeça a resposta de chegar, o proponente pode desconsiderar.
40.2.2. Chegada da resposta ao proponente: Se esta for tardia, ele deverá avisar ao destinatário sob risco de pagar perdas e danos (art. 430).
40.2.3. Contrato: Este será firmado no momento da aceitação e não quando o proponente receber a resposta, momento em que o destinatário manifesta a vontade e a aceitação é expedida (teoria da expedição).
40.2.4. Local de celebração do contrato (art. 435): O contrato será celebrado no local em que foi proposto, mesmo que o destinatário e o objeto estejam em locais distintos (exceção: Contrato de venda de imóveis é celebrado no local do imóvel).
41. Extinção dos contratos: Se dá com o adimplemento das obrigações
41.1. Extinção anormal: Se dá com o inadimplemento.
41.2. Resilição (cláusula resolutória):o desfazimento de um contrato por simples manifestação de vontade, de uma ou de ambas as partes. Ressalte-se que não pode ser confundido com descumprimento ou inadimplemento, pois na resilição as partes apenas não querem mais prosseguir. A resilição pode ser bilateral (distrato, art. 472 , CC) ou unilateral (denúncia, art. 473 , CC).
41.3. Unilateral: Cheia ou vazia.
41.3.1. Vazia: Desmotivada;
41.3.2. Cheia: Motivada. O locatário tem direito de resilir o contrato antes do final.
41.4. Bilateral (distrato): Resilição por vontade de ambas as partes.
42. Cláusula proibitiva de resilição: Mesmo com o pacta sunt servanda, existe a autonomia da vontade, que pode burlar cláusulas proibitivas de resilição, mesmo que hajam multas. Deve ser pago o equivalente ao valor até o final do contrato ou pelo menos um valor que não permita que a empresa saia no prejuízo (função social dos contratos) para que se equilibre o contrato (art. 473, §ú).
43. Cláusula resolutória expressa: Consta no contrato que se qualquer das partes inadimplir, o contrato será resolvido imediatamente (art. 474 CC).
44. Constituição em mora: Ocorre mediante notificação e é mais uma forma de resolução.
45. Cláusula resolutiva tácita (art. 474): Depende de notificação da constituição em mora do devedor pois não há previsão expressa.
46. Perdas e danos: A indenização pode ser pedida em qualquer caso de inadimplemento, se não quiser exigir o cumprimento, a parte lesada pode pedir resolução (art. 475).
47. Teoria da exceção de contrato não cumprido (art. 476): Possibilidade da parte lesada pelo descumprimento também descumprir a obrigação do contrato bilateral. Um contratante que não cumpre sua parte do contrato não pode exigir a do outro. Enquanto o contrato não for cumprido em sua totalidade, não pode ser considerado cumprido e pode-se exigir o cumprimento (Existem exceções de contratos não cumpridos sendo aceitos, por exemplo a compra de apartamento na planta).
48. Cláusula razoável: Se o possível atraso vem especificado no contrato, o cliente que aceitá-lo não poderá reclamar das prestações e ainda deverá pagá-las.
49. Exceção do contrato quase cumprido: Se o imóvel for entregue faltando, por exemplo, áreas comuns, pode-se não pagar enquanto a obra não for terminada. O contrato não será rescindido, mas as obrigações serão suspensas até que a outra parte cumpra o combinado.
50. Recuperação judicial do devedor: Não se pode invocar a exceção de contrato não cumprido até que chegue o momento da outra parte cumprir sua parcela contratual, porém pode-se questionar o devedor em caso de suspeitas de inadimplemento antecipado (art. 477).
51. Resolução por onerosidade excessiva (art. 478, CC): Busca-se preservar o equilíbrio contratual, baseando-se na teoria da imprevisão para fatos que tornem as prestações excessivamente desvantajosas, que não sejam por culpa do devedor. O contrato será então convertido ao status quo anterior.
52. Princípio da comutatividade: Revisão do contrato para que este seja reequilibrado. O contrato se mantém "enquanto as coisas assim estiverem" (rebus sil standibus).
53. Conservação dos contratos (art. 479): Por motivo de onerosidade excessiva, o contrato é renegociado (ex: Pragas nunca vistas invadem a plantação). Ao constatar a desproporcionalidade, pode-se uma revisão que diminua a onerosidade excessiva sobre uma das partes (art. 480).
54. Vícios redibitórios: Defeitos ocultos da coisa que a tornam impropria ao fim a que se destina ou lhe diminuem o valor de tal forma que o contrato não teria se realizado se estes defeitos fossem conhecidos (art. 441). Não é sinônimo de defeito oculto, tem natureza jurídica de garantia legal contra defeitos ocultos na coisa.
55. Elementos:
55.1. Contrato bilateral em que as partes têm prestação e contra prestação equivalentes.
55.2. Tipos de coisa: Bens móveis, imóveis, semoventes, etc.
55.3. Doação Não há contraprestação, logo não se pode reclamar de vícios (em regra). Em caso de doação onerosa, com encargo, cabe alegação de vício redibitório.
55.4. Coisa com defeito: Pode-se devolver a coisa ou pedir abatimento desde que o defeito seja grave e oculto. Defeito que impeça o funcionamento ou diminua muito o valor (ex: Carro com vazamento de óleo).
56. Pode ser alegado em caso de: Troca, locação, prestação de serviços e tudo que envolva contra prestação.
57. Vício na tradição: Ainda que seja aparente, deve haver aquisição de coisa defeituosa.
58. Defeitos graves: Devem ser percebidos por pessoa média e devem impossibilitar o uso para seu fim ou diminuir consideravelmente o valor do bem.
59. Procedimento judicial: Em caso de negação por parte do alienante, pode-se pedir uma dessas duas ações.
59.1. Boa-fé do alienante: Devolve-se o valor pago + despesas do negócio.
59.2. Má-fé do alienante: Devolve-se o valor pago + despesas do negócio + perdas e danos.
60. Prazos: Para reclamar de defeitos aparentes e não garantias.
60.1. Garantia legal: Prazo para que o defeito apareça.
60.2. Bem consumível (CDC): 30 dias de garantia.
60.3. Bem inconsumível (CDC): 90 dias de garantia.
60.4. Bem móvel (art. 445): 30 dias para reclamar (não para o defeito aparecer).
60.4.1. Para aparecer o defeito: 180 dias.
60.5. Bem imóvel: 1 ano para reclamar (não para o defeito aparecer).
60.5.1. Para aparecer o defeito: 1 ano.
61. Detectado o vício: Independente de ser móvel o imóvel, inicia-se o prazo de reclamação.
62. Garantia estendida: A garantia do devedor precede a garantia legal e em nada influencia em seu prazo. Quando termina a garantia do devedor, inicia-se a garantia legal, somando-se ao prazo anterior.
63. Evicção: Garantia legal do adquirente contra a perda da coisa em decorrência de sentença judicial contra o alienante (art. 446). Pela função social e princípio da boa-fé, tem-se direito ao reequilíbrio contratual desde que o contrato seja oneroso.
64. Partes:
64.1. Alienante: Quem vendeu o bem e reembolsará o evicto.
64.2. Evicto: Adquirente que foi prejudicado. Poderá denunciar no polo passivo o alienante para ajudar o evictor a provar a propriedade do bem.
64.3. Evictor: Terceiro beneficiado com a coisa perdida.
65. Ação de regresso: A mesma sentença pode ordenar a devolução do bem e também o ressarcimento da quantia, chamando as 3 partes ao processo. A sentença judicial torna-se um título executivo.
66. Requisitos:
66.1. Aquisição onerosa: Gratuita não vale.
66.2. Perda da coisa;
66.3. Desconhecimento da situação litigiosa do bem: Não se imaginava a perda da coisa por sentença judicial.
66.4. Procedimento judicial do alienante: Ocorre também a perda da coisa por ato administrativo e não só judicial (ex: Apreensão do veículo pelo Detran).
67. Disposição: É um direito disponível que se pode abrir mão por exclusão (art. 447/449).
67.1. Cláusula: Não basta apenas uma cláusula, o adquirente deve ter noção do risco e assumi-lo. (art. 457).
68. Restituição: Pedida na ação de evicção.
68.1. Preço: Restituição do que foi pago no preço atual do bem e não apenas no valor corrigido, inclusive se foi desvalorizado.
69. Frutos: Devem ser restituídos os físicos e os civis.
70. Despesas: Com negócios, todos os gastos feitos, assim como as custas judiciais e honorários advocatícios.
71. Benfeitorias: Se forem pagas pelo proprietário, não poderão ser levantadas.
71.1. Voluptuárias: Não podem ser cobradas, mas podem ser levantadas.
71.2. Úteis e necessárias: Podem ser cobradas (ex: Pneus novos para o carro).
72. Prazo: A perda deve ter acontecido em razão de algo antes da venda. O credor não pode pedir bens anteriores a ação de cobrança pois o direito do evictor é anterior ao do alienante (ex: Bem vendido no ano anterior).
73. Ação de regresso: Só pode ser ajuizada até o momento anterior ao direito do terceiro. O marco da ação de regresso é do direito do evictor para frente, voltando-se até quem deu causa a evicção, de quem o evictor adquiriu.
74. Prazo prescricional para cobrar crédito alienável (art. 205, V): 5 anos, pretensão contra ressarcimento sem causa.
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